sexta-feira, 1 de junho de 2018

TEMAS DE ENSAIO - POBREZA

Consideremos se temos a obrigação de ajudar aqueles cuja vida está em perigo e, em caso afirmativo, o modo como esta obrigação se aplica à situação mundial actual.

A obrigação de ajudar

O argumento a favor da obrigação de ajudar

Na minha universidade, o percurso que vai da biblioteca ao anfiteatro das Humanidades passa por um lago ornamental pouco profundo. Suponhamos que, ao ir dar uma aula, me apercebo de que uma criança caiu e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama e cancelar a aula ou atrasá-la até encontrar um meio de mudar de roupa; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem
com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo. Este princípio é incontroverso. Terá obviamente o apoio dos consequencialistas; mas os não consequencialistas devem também aceitá-lo, pois o preceito de impedir o mal só se aplica quando nada de importância comparável está em risco. Assim, o princípio não pode levar ao tipo de actos que os não consequencialistas categoricamente desaprovam -- graves violações dos direitos individuais, injustiça, quebra de promessas, etc. Se os não consequencialistas considerarem que qualquer destes actos é comparável, em importância moral, ao mal que queremos evitar, irão automaticamente considerar que o princípio não se aplica naqueles casos em que o mal só pode ser evitado violando direitos, provocando injustiça, quebrando promessas, ou seja o que for que esteja em causa. A maioria dos não consequencialistas defende que devemos evitar o mal e promover o bem. O seu desacordo com os consequencialistas reside na sua insistência em que este não é o único princípio ético fundamental; o facto de ser um princípio ético não é negado por nenhuma teoria ética plausível. Apesar de tudo, o aspecto incontroverso do princípio segundo o qual devemos evitar que o mal aconteça, quando podemos fazê-lo sem nada sacrificar que tenha uma importância moral comparável, é enganador. Se fosse levado a sério e orientasse as nossas acções, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão correctos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um acto de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer. É este o argumento em favor da obrigação de ajudar. De um modo mais formal, poderia ser formulado como se segue:

Primeira premissa: Se pudermos impedir que um mal aconteça sem sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo; Segunda premissa: A pobreza absoluta é um mal; Terceira premissa: Há alguma pobreza absoluta que podemos impedir que aconteça sem sacrificar nada de importância moral comparável; Conclusão: Temos o dever de impedir alguma pobreza absoluta.

A primeira premissa é a premissa moral substancial na qual assenta o argumento; e tentei provar que é aceite por pessoas que defendem várias posições éticas. É improvável que a segunda premissa seja contestada. A pobreza absoluta está, como disse Mc_Namara, "abaixo de qualquer definição razoável de decência humana" e seria difícil encontrar uma perspectiva ética plausível que não a
considerasse um mal. A terceira premissa é mais controversa, apesar de estar cautelosamente formulada. Defende apenas que se pode impedir alguma pobreza absoluta sem o sacrifício de seja o que for de importância moral comparável. Evita assim a objecção de que toda a ajuda que eu puder dar não passa de "uma gota no oceano", porque a questão não é a de saber se a minha contribuição pessoal causará alguma impressão perceptível na pobreza mundial no seu todo (claro que não), mas se impede alguma pobreza. _é tudo o que o argumento precisa para sustentar a sua conclusão, dado que a segunda premissa afirma que qualquer pobreza absoluta é um mal, e não a quantidade total de pobreza absoluta. Se, sem sacrificar seja o que for de importância moral :, comparável, pudermos proporcionar a uma única família os meios de sair da pobreza absoluta, a terceira premissa é satisfeita. Deixei por examinar a noção de importância moral para provar que o argumento não depende de quaisquer valores ou princípios éticos específicos. Penso que a terceira premissa é verdadeira para a maioria das pessoas que vivem em países industrializados, em qualquer perspectiva defensável do que é moralmente importante. A nossa abastança significa que dispomos de rendimento que podemos dispensar sem pormos em causa as necessidades básicas da vida e podemos usar esse rendimento para reduzir a pobreza absoluta. O quanto achamos que temos a obrigação de dar depende daquilo que considerarmos de importância moral comparável à pobreza que evitamos: roupas de marca, jantares caros, uma aparelhagem de som sofisticada, férias no estrangeiro, um (segundo?) carro, uma casa maior, escolas privadas para os nossos filhos, etc. Para um utilitarista é provável que nada disto tenha uma importância moral comparável à diminuição da pobreza absoluta; e os que não são utilitaristas, se aceitarem o princípio da universalizabilidade, têm de aceitar que pelo menos algumas destas coisas têm um significado moral muito inferior à pobreza absoluta que poderia ser evitada com o dinheiro que custam. De modo que a terceira premissa parece verdadeira de qualquer perspectiva ética plausível --embora a quantidade exacta de pobreza absoluta que pode ser evitada sem se sacrificar seja o que for de importância moral comparável varie de acordo com a perspectiva ética de cada um.


*_Cuidar dos nossos*. A todo aquele que tenha trabalhado para aumentar o valor da ajuda internacional se deparou o argumento de que devemos cuidar dos que nos estão mais próximos, das nossas famílias e depois dos pobres do nosso país, antes de pensarmos na pobreza dos países distantes. Não há dúvida que preferimos instintivamente ajudar aqueles que estão perto de nós. Poucas pessoas seriam capazes de ficar a ver uma criança a afogar-se; mas muitas conseguem ignorar a fome em _áfrica. Porém, a questão não é o que :, costumamos fazer, mas o que devemos fazer; e é difícil encontrar uma justificação moral sólida para a perspectiva de a distância ou a condição de membro de uma comunidade introduzir uma diferença crucial nas nossas obrigações. Consideremos, por exemplo, as afinidades raciais. Será que as pessoas de origem europeia devem ajudar os europeus pobres antes de ajudarem os africanos
pobres? A maior parte das pessoas rejeitaria esta hipótese sem pestanejar e a nossa discussão do princípio da igualdade na consideração de interesses, no capítulo 2, mostrou por que razão o devemos fazer; as necessidades alimentares das pessoas nada têm a ver com a sua raça e, se os Africanos precisam mais de comida que os Europeus, seria uma violação do princípio da igualdade na consideração de interesses dar preferência aos Europeus. O mesmo se aplica à cidadania ou à nacionalidade. Todos os países ricos possuem alguns cidadãos relativamente pobres, mas a pobreza absoluta limita-se em grande parte aos países pobres Aqueles que vivem nas ruas de Calcutá ou na região árida do Sael, em _áfrica, encontram-se num estado de pobreza desconhecido no Ocidente. Nestas circunstâncias, seria um mal decidir que apenas aqueles que têm a sorte de pertencer à nossa própria comunidade partilhariam da nossa abundância. Sentimos as obrigações de parentesco com mais intensidade do que as de cidadania. Que pais dariam a outra pessoa a sua última tigela de arroz se os seus filhos estivessem com fome? Fazê-lo pareceria pouco natural, contrário à nossa natureza como seres biologicamente evoluídos -- embora a questão de saber se seria um mal ou não seja uma outra questão. Em todo o caso, não estamos perante uma tal situação, mas perante uma em que os nossos filhos estão bem alimentados, bem vestidos, com um bom ensino e agora gostariam de ter novas bicicletas, uma aparelhagem ou o seu próprio carro. Nestas circunstâncias, qualquer obrigação especial que pudéssemos ter para com os nossos filhos já foi satisfeita e as necessidades dos estranhos exercem mais força sobre nós. O elemento de verdade na perspectiva de que devíamos em primeiro lugar tomar conta dos nossos reside na vantagem de um reconhecido sistema de responsabilidades. Quando as :, famílias e as comunidades tomam conta dos seus membros mais pobres, os laços de afecto e a relação pessoal atingem fins que, de outro modo, exigiriam uma enorme burocracia impessoal. Daí que seja absurdo propor que daqui para a frente nos consideremos igualmente responsáveis pelo bem-estar de toda a gente em todo o mundo; mas não é isso que propõe o argumento em prol da obrigação de ajudar. Aplica-se apenas quando existem pessoas a viver num estado de pobreza absoluta e outros podem ajudar sem sacrificar seja o que for de importância moral comparável. Permitir que alguém da nossa família se afundasse na pobreza absoluta seria sacrificar algo de importância comparável; e, antes de se atingir esse ponto, a ruptura do sistema de responsabilidade familiar e comunitária seria um factor que faria o prato da balança pender em favor de um pequeno grau de preferência pela família e pela comunidade. Este pequeno grau de preferência, porém, é decisivamente ultrapassado pelas discrepâncias existentes em riqueza e nobreza.

*_Direitos de propriedade*. Terão as pessoas direito à propriedade privada, um direito que contradiz a perspectiva segundo a qual têm a obrigação de dar alguma da sua riqueza aos que vivem em pobreza absoluta? De acordo com algumas teorias dos direitos (como a de Robert Nozick), desde que alguém tenha adquirido a propriedade sem o uso de meios injustos, como a força ou a fraude, tem direito a uma riqueza enorme, enquanto outros morrem à mingua. Esta concepção individualista de direitos é contrariada por outras perspectivas, como as primeiras
doutrinas cristãs, que se podem encontrar nas obras de Tomás de Aquino, defendendo que, como a propriedade existe para a satisfação de necessidades humanas, "tudo o que o homem possa ter em superabundância é devido, por direito natural, ao pobre para seu sustento". Um socialista também achará por certo que a riqueza pertence à comunidade, e não ao indivíduo, enquanto os utilitaristas, quer sejam socialistas, quer não, estariam dispostos a suprimir os direitos de propriedade para evitar maiores males. Será que o argumento em favor da obrigação de ajudar os outros pressupõe então uma destas teorias dos direitos de :, propriedade, e não uma teoria individualista como a de Nozick? Não necessariamente. Uma teoria dos direitos de propriedade pode insistir no nosso *direito* de conservar riqueza sem se pronunciar sobre se os ricos *devem* dar aos pobres. Nozick, por exemplo, rejeita o uso de meios coercivos, como os impostos, para redistribuir o rendimento, mas sugere que podemos atingir os fins que julgamos moralmente desejáveis por meios voluntários. Logo, Nozick rejeitaria a afirmação de que os ricos têm a "obrigação" de dar aos pobres, na medida em que isso implicasse que os pobres têm o direito à ajuda dos ricos; mas poderia aceitar que dar é algo que se deve fazer e que não dar, embora seja um direito, é um mal -- porque uma vida ética vai para além do respeito pelos direitos dos outros. O argumento em favor da obrigação de ajudar pode subsistir, com pequenas modificações, mesmo que aceitemos uma teoria individualista dos direitos de propriedade. Em todo o caso, porém, penso que não devemos aceitar uma tal teoria. Deixa demasiado ao acaso para poder ser uma perspectiva ética aceitável. Por exemplo, aqueles cujos antepassados por acaso habitavam alguns ermos arenosos em volta do golfo Pérsico são hoje fabulosamente ricos, porque há petróleo no subsolo dessas areias, enquanto aqueles cujos avós se estabeleceram em terras melhores a sul do Sara vivem na pobreza absoluta, devido à seca e a más colheitas. Pode esta distribuição ser aceitável de um ponto de vista imparcial? Se nos imaginarmos em vias de iniciar a vida como cidadãos do Bahrein ou do Chade, sem sabermos qual, aceitaríamos o principio segundo o qual os cidadãos do Bahrein não têm qualquer obrigação de ajudar quem vive no Chade?

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