sexta-feira, 1 de junho de 2018

TEMAS PARA O ENSAIO FILOSÓFICO - A ARTE

ENTREVISTA A
Derek Matravers sobre a definição de arte

David Edmonds: Antigamente era muito fácil. O que Rembrandt pintava era arte, e também o que pintavam da Vinci, Botticelli, Rubens, Constable e Vermeer. Os quadros belos eram arte. Mas depois veio Marcel Duchamp e aquilo a que ele chamou “A Fonte” – um urinol – um ‘ready-made’, como costuma chamar-se, que fez a sua aparição numa mostra em 1917.  Em tempos mais recentes, o artista britânico Tracey Emin exibiu uma cama por fazer; Damien Hurst mergulhou um tubarão-tigre em formaldeído. É isto arte? Parece absurdo negar que o seja, uma vez que são obras vendidas por somas astronómicas e exibidas em museus respeitados. Mas, se são arte, são-no apenas porque estão de algum modo ligadas ao mundo da arte – e porque o mundo da arte as considera arte? Basta isto? Não, segundo Derek Matravers, da Open University e autor de Art and Emotion.

Nigel Warburton: O tópico em que nos iremos concentrar é a definição de arte. A definição de arte tem uma história – pode dar-nos alguma informação de fundo sobre a origem da ideia de arte?

Derek Matravers:  De acordo com o historiador da arte Paul Kristeller, as belas-artes tal como nós as conhecemos – coisas como pinturas, esculturas e a música – encontravam-se numa dispersão conceptual antes dos anos quarenta do século XVIII, mais coisa menos coisa. Assim, por exemplo, a música encontrava-se ligada à matemática, outras belas-artes à engenharia, ou ao que se chamava engenharia naquela época. Então, nessa década, um pensador francês chamado Abbé Batteaux teve a ideia de que se podia agrupar estas coisas sob a categoria ‘belas-artes’, e é aí que vamos buscar o nosso conceito moderno de arte.

NW: Está portanto a dizer que foi uma única pessoa que praticamente inventou a arte?

DM: Sim, embora se tenha de pensar no contexto da época. Aquele que foi considerado um dos primeiros romances, Pamela, de Richardson, tinha sido apenas publicada poucos anos antes; o Iluminismo estava no seu auge e as pessoas tinham mais tempo de lazer. Trata-se, com efeito, de um período de grande inovação conceptual; alguém iria inventar o conceito. Não foi, por isso, um homem isolado no seu escritório a fazê-lo, mas um elemento de uma corrente mais geral.

NW: Há obviamente coisas a que chamaríamos arte que já existiam antes desse tempo. Portanto, o que estamos a dizer é que elas não se encontravam conceptualmente agrupadas à partida. O que é que permitiu a este homem agrupá-las? Qual era para ele a essência da arte?

DM: Ele teve duas ideias. Primeiro, disse que a arte é imitação da natureza – o que é provavelmente um erro. É um erro porque há inúmeras coisas que até ele considerava belas-artes que não se enquadram na ideia. Mas a sua principal ideia era que estas coisas eram causadoras de prazer – causam no auditório determinados estados mentais que podem ser apreciados em si mesmos. O nome que deu a isso foi ‘prazer’.

NW: Concentremo-nos nas artes visuais, pois é mais simples; podemos acompanhá-las ao longo dos séculos XX e XXI. Além disso, não é absurdo pensar nas artes visuais do século XVIII como representações detentoras de beleza estética.

DM: Correcto. A beleza aparece aí rapidamente. Por razões relativamente óbvias, o prazer revela-se uma caracterização bastante inadequada do estado mental provocado pelas belas-artes. Também retiramos prazer de um duche quente e quando sorvemos um café e outras coisas do género. Ora, nós pensamos que o estado mental ligado às artes  é mais complicado. O filósofo alemão do Iluminismo Immanuel Kant escreveu três grandes livros de filosofia. O terceiro, a Critica da Faculdade de Julgar, deu uma explicação do estado mental que surge da percepção da beleza mais subtil.
Portanto, temos aqui duas coisas: temos um estado mental complexo, ligado ao prazer, mas que é mais complexo do que o prazer, e uma nova palavra para nomear as coisas que no mundo causam este estado mental, ‘beleza’. Não era evidentemente uma palavra nova, mas a ligação era. Por conseguinte, os objectos belos eram os objectos que causavam este estado mental complexo, esta experiência estética.

NW: Para Kant, há um elemento formal forte, no sentido em que era o padrão das formas e das linhas que determinava se algo é belo ou não.

DM: É isso mesmo. Pensava que é absurdo dizer “Isto é belo para mim’. Podemos dizer que gostamos de algo, mas se afirmamos que algo é belo, o que estamos a fazer é a pedir aos outros que concordem connosco.  Kant tinha por isso este problema: queria dizer que os juízos de beleza eram universais, que toda a gente tinha de concordar com eles; por outro lado, a explicação que apela apenas ao prazer tornava-os muito individuais. Deste modo, o que ele fez – e este é um pensamento simples – foi retirar dos juízos de beleza tudo o que pudesse pertencer a alguém enquanto indivíduo e concentrar-se naquelas coisas que toda a gente poderia ver em comum. Tomou isto como a forma do objecto. Portanto, abstraiu da cor – porque você pode preferir o vermelho e eu o verde –, abstraiu de tudo excepto dos elementos formais de modo a obter-se juízos universais.

NW: Saltemos para o fim do século XIX e princípio do século XX, quando se deu um forte movimento nas artes visuais no sentido da abstracção: um afastamento da ideia de representar a natureza como ela é, a ênfase na pincelada, uma aproximação gradual no sentido da abstracção total, sem relação directa com qualquer figura existente no mundo. Outro aspecto desse movimento foram os ready-made de Duchamp – objectos existentes que ele conseguiu pôr em museus onde foram reconhecidos como objectos de arte. Como é que a abordagem estética tradicional da arte como beleza podia lidar com isto?

DM: Tem toda a razão, houve uma crise, que costuma datar-se pelos anos de 1912-14. Há várias explicações para o que provocou esta crise. Uma delas é que se quisermos remontar à ideia das artes visuais enquanto representações do mundo, percebemos imediatamente que a fotografia e os filmes são capazes de representar o mundo muito melhor do que a pintura e, por isso, a arte entra em crise. Penso que isto é, em parte, verdade, mas não creio que seja tudo, pela simples razão de que não penso que a principal tarefa dos artistas antes de 1914 fosse representar o mundo. Mas houve certamente um corte com a beleza. Estes objectos foram incluídos no mundo das artes apesar de não serem belos. A definição de arte  tinha de ser abandonada ou expandida de modo a acomodar estes novos objectos.

NW: É quase como se alguns artistas, em particular Duchamp, atacassem deliberadamente uma concepção passada do que tinha sido a arte.

DM: Sim, é isso mesmo. O termo que à época descrevia a corrente intelectual era o termo ‘modernismo’. Tal como durante o Iluminismo, também aqui houve uma enorme revolução no pensamento, e houve grandes mudanças na arte, bem como em muitas outras coisas.

NW: Voltando à filosofia, como lidámos com esta mudança? Podemos dar uma definição de arte que abranja tanto a arte tradicional, a arte visual do século XVIII e posterior, como os novos tipos de arte radicais dos séculos XX e XXI?

DM: Bem, um par de filósofos, Arthur Danto e George Dickie, ambos americanos, apareceram com uma ideia bastante simples. Afirmaram que as obras de arte estavam objectos ligados a uma prática social particular. Suponha que olhamos para um parque de estacionamento e vemos dois objectos: uma pintura e uma mota japonesa. Podem ser ambos belos objectos, mas o que faz da pintura uma obra de arte é o facto de ela estar ligada ao mundo da arte e de a mota não estar ligada ao mundo da arte. Portanto, estas ligações passaram a definir a arte.

NW: É importante neste contexto que sejamos claros sobre o significado de ‘o mundo da arte’. Não tem a ver apenas com pessoas que trabalham em museus ou que têm uma posição ou poder nas várias instituições. Para Dickie trata-se certamente de uma categoria mais alargada – de tal modo que qualquer pessoa que pense ser um membro do mundo da arte o é automaticamente. Qualquer pessoa que queira ser um artista passa a ser, por esse facto, um membro do mundo arte.

DM: Sim. Diferentes pessoas dizem coisas diferentes sobre o que entendem exactamente por mundo da arte. Tem toda a razão ao dizer que a definição de Dickie era extremamente alargada. Ligamos provavelmente melhor os objectos a uma definição trazida a lume por outro filosofo americano, Jerrold Levinson, que consiste em pensar o mundo da arte como a tradição histórica de fazer arte.

NW: Tomemos o exemplo da Fonte de Duchamp – que era um urinol assinado, produzido industrialmente. Como pode tal coisa ser uma obra de arte? O original perdeu-se, mas Duchamp fez algumas cópias autenticadas que agora se encontram na Tate Modern, no Beaubourg Centre e em vários lugares pelo mundo fora. Como podem estas coisas ser obras de arte?

DM: A diferença entre o urinol de Duchamp e um urinol comum é que Duchamp ligou o seu urinol ao mundo da arte, e é isto que faz dele uma obra de arte. Por isso, tomando a explicação de George Dickie dessa ligação, uma coisa é uma obra de arte se, primeiro, é um artefacto e, segundo, uma pessoa ou pessoas, agindo em nome do mundo da arte, a apresentam como candidato a uma apreciação. Portanto, o que vemos aqui é Duchamp a apresentar o seu urinol como candidato a uma apreciação, e é isso que faz que este urinol seja arte e que outros urinóis não sejam arte.

NW: Todavia, você tem alguma reservas a respeito da teoria institucional, pelo menos nos termos simples em que a discutimos.

DM: Sim. Richard Wollheim, que foi um proeminente especialista britânico na área da estética da última metade do século passado, chamou a atenção para um dilema presente na teoria institucional. Disse o seguinte: “Bem, ou as pessoas têm razões para apresentar esses objectos como arte ou não. Se têm essas razões, são elas que nos interessam, pois são elas que fazem do objecto arte; se as não têm, o que fica é uma teoria completamente desinteressante, pois tudo o que teríamos seria um conjunto arbitrário de objectos.” Este dilema parece ter inibido a teoria institucional por algum tempo, e penso que foi em geral entendida como uma refutação da teoria. Mas não sei se o dilema funciona realmente.
Lembre-se de uma das primeiras analogias de Dickie: qual a diferença entre uma pessoa casada e uma pessoa não casada? Não terá a ver com a constituição física. O que se passa é que uma delas foi objecto de um processo. E isso, diz Dickie, é semelhante ao que acontece com as obras de arte: as obras de arte são objecto de um processo de institucionalização deste tipo. Mas apesar de ser verdade não haver uma só razão que explique porque é que toda a gente que é casada é casada – as pessoas casam-se por diferentes motivos –, é não obstante verdade que alguma razão há que a explicar porque é que quem é casado se casou. É isto que os institucionalistas deviam ter dito a Wollheim: “Está bem, não há uma só razão para apresentar um objecto como obra de arte. Mas para cada objecto, haverá uma ou outra razão que explica porque é que um certo objecto é apresentado em vez de outro.”

NW: Está portanto a dizer que alguns ready-made podiam ser escolhidos porque eram belos ou por serem entendidos como comentários icónicos à sociedade capitalista – que podiam ser uma série de razões a explicar porque é que uma certa obra estava num museu?

DM: Sim. O que há de bom nesta ideia é que se podem incorporar todas as razões invocadas no passado. Podemos dizer que os quadros de Rembrandt são obras de arte e a razão pela qual eles são obras de arte está no facto de serem pinturas. O urinol de Duchamp é uma obra de arte, e a razão pela qual é uma obra de arte é um certo acto mental ou um certo acto de atribuição levado a cabo por Duchamp. O que estamos a dizer é algo do género: “Trata-se de uma obra de arte devido a x”, especificando depois as razões. Que razões? Bem, quaisquer razões que sejam operativas no mundo da arte da época.
Tomemos algumas das razões que temos actualmente. Parece haver uma legitimação do legado de Duchamp o facto de haver artistas – Tracey Emin e Damien Hirst, dois artistas britânicos modernos, dizem-no em entrevistas – que pensem que, como são artistas, a sua palavra é suficiente para fazer de algo uma obra de arte. Assim, se lhes perguntarmos ‘porque é que isto é uma de arte?’, eles dizem ‘Sou um artista e deitei as mãos a isto e fiz disto uma obra de arte’. Ora, parece-me que esta é uma razão hoje em dia operativa no mundo da arte. Ora, na minha opinião não se trata de uma razão defensável. Penso que isto não passa de tolice intelectual. 

NW: Você rejeita por isso esta ideia de os artistas serem detentores do toque de Midas, e o que põe no lugar disto é a ideia de que têm de haver razões por detrás das escolhas. Têm de haver razões para seleccionar um objecto como obra de arte e para rejeitar outros enquanto tais. Mas quem é que julga quais as razões que contam?

DM: Essa, penso, é a questão crucial, pois o que aqui temos é a vingança de Richard Wollheim. A acusação inicial de Wollheim era que se os teorizadores institucionais adoptassem uma das alternativas, acabariam com uma conjunto arbitrário de objectos. Se seguirem o meu raciocínio, eles são capazes de derrotar esta objecção, mas acabarão com o que Wollheim consideraria de certeza um conjunto arbitrário de razões. Isto porque o que continua a fazer desta abordagem uma abordagem institucional é o facto de recorrermos a uma colecção de razões qualquer, desde que operacional actualmente no mundo da arte. Não se exige ao mundo da arte que defenda essas razões.

NW: Pensa que isso levaria a avaliações mais claras do mérito relativo das obras de arte?

DM: Penso que sim. É necessário regressar a um ponto em que as pessoas possam recorrer a uma narrativa que explique porque é que têm interesse em determinadas obras de arte que possam convencer-nos a perder tempo com elas, e de que podemos retirar delas um tipo de experiência que possamos considerar rica. Por exemplo, não sei se você já se preocupou em saber quantas tardes de Sábado disponíveis lhe restam na vida. Para quem está na meia idade, trata-se de um número bastante pequeno, alarmantemente pequeno. Ora, se pegar numa dessas tardes de Sábado e a gastar num museu, é preciso que exista uma narrativa que explique porque é que vale a pena perder esse tempo.

David Edmunds & Nigel Warburton (org.), Philosophy Bites. 25 Philosophers on 25 Intriguing Subjects (Oxford, 2010). Trad. Carlos Marques.

TEMAS DE ENSAIO - RELIGIÃO -

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TEMAS DE ENSAIO - A GUERRA

A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção. Não só é mais sangrenta e mais mortífera do que todas as guerras passadas, por causa do aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão cruel, exasperada e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as restrições a que os povos se obrigaram em tempos de paz – o chamado Direito Internacional – não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito de propriedade. Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens. Desfaz todos os laços da solidariedade entre os povos combatentes e ameaça deixar atrás de si uma exasperação que, durante longo tempo, impossibilitará o reatamento de tais laços. Tornou também patente o fenómeno, dificilmente concebível, de que os povos civilizados se conhecem e compreendem entre si tão pouco que podem virar-se, cheios de ódio e de repulsa, uns contra os outros. Quando falo do desapontamento, já todos sabem a que me refiro. Não é necessário ser um fanático da compaixão; pode muito bem reconhecer-se a necessidade biológica e psicológica do sofrimento para a economia da vida humana e, no entanto, condenar a guerra nos seus meios e objectivos, suspirar pela sua cessação. Afirmou-se, sem dúvida, que as guerras não poderão terminar enquanto os povos viverem em tão diversas condições de existência, enquanto as valorações da vida individual diferirem tanto entre uns e outros e os ódios, que os separam, representarem forças instintivas anímicas tão poderosas. Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre as raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direcção da humanidade, que se sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e os seus conflitos de interesses. Dentro de cada uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua conduta, se pretendesse participar na comunidade cultural. Estes preceitos, muitas vezes rigorosíssimos, exigiam muito dele: uma ampla auto-limitação e uma acentuada renúncia à satisfação das pulsões. Estava-lhe sobretudo proibido servir-se das extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta com os outros homens. O Estado civilizado considerava estas normas morais como o fundamento da sua existência, saía abertamente em sua defesa se alguém ousava infringi-las e, inclusive, declarava como impraticável a sua sujeição ao exame do entendimento crítico. Era, pois, de supor que ele próprio quisesse respeitá-las e que não pensasse empreender contra elas algo que constituísse uma negação dos fundamentos da sua própria existência. Por último, pôde observar-se como dentro das nações civilizadas se encontravam inseridos certos restos de povos que eram em geral incómodos e que, por isso, só com relutância e com limitações eram admitidos a participar na obra comum da cultura, para a qual se tinham revelado suficientemente aptos. Mas era de crer que os grandes povos tivessem alcançado uma tão grande compreensão dos seus elementos comuns e tanta tolerância em face das suas diferenças que não confundissem num só, como na antiguidade clássica, os conceitos de “estrangeiro” e de “inimigo”. Confiando neste acordo dos povos civilizados, inumeráveis homens trocaram a sua residência na pátria pelo domicílio no estrangeiro e associaram a sua existência às relações comerciais entre os povos amigos. Mas aquele a quem a necessidade de vida não encadeava constantemente ao mesmo lugar podia formar para si, com todas as vantagens e todos os atractivos dos países civilizados, uma nova pátria maior em que ele se comprazia sem obstáculo e sem suspeitas. Saboreava assim o mar azul e cinzento, a beleza das montanhas nevadas e dos verdes prados, o encanto dos bosques do Norte e a magnificência da vegetação meridional, a atmosfera das paisagens sobre as quais pairam grandes recordações históricas, e a serenidade da natureza intacta. Esta nova pátria era também para ele um museu repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade civilizada tinham, há muitos séculos, criado e legado. Ao deambular neste museu de sala em sala, pude comprovar imparcialmente quão diversos eram os tipos de perfeição que, entre os outros compatriotas seus, tinham sido criados pela mistura de sangues, pela história e pela peculiaridade da mãe Terra.(...)

Sigmund Freud, Escritos sobre a  guerra e a Morte, p7 e 8,Lusosofia, Covilhã.
Tradução Artur Morão

TEMAS DE ENSAIO - EUTANÁSIA




Eutanásia

"Eutanásia" significa, de acordo com o dicionário, "uma morte serena e pacífica", mas refere-se actualmente à morte daqueles que têm doenças incuráveis ou que vivem em grande dor e sofrimento, em benefício daqueles que são mortos e para os poupar a mais dor e sofrimento. É este o tema principal deste capítulo. No entanto, considerarei também alguns casos em que, embora a morte não seja contrária aos desejos do ser humano que é morto, também não é efectuada especificamente em benefício desse ser. Como veremos, alguns casos que se referem a bebés recém-nascidos incluem-se nesta categoria. Esses casos podem não ser de "eutanásia" no sentido estrito do termo, mas torna-se proveitoso inclui-los na mesma discussão geral, desde que se estabeleçam com clareza as diferenças relevantes que os distinguem. Na definição habitual de eutanásia cabem três tipos distintos, cada um dos quais levanta questões éticas específicas. Será útil para a nossa abordagem se começarmos por esclarecer esta tripla distinção, avaliando depois a possível justificação de cada tipo.





Tipos de eutanásia



Eutanásia voluntária



A maioria dos grupos que actualmente fazem campanhas para que a lei seja alterada no sentido de autorizar a eutanásia fazem-no a favor da eutanásia voluntária, isto é, a eutanásia realizada a pedido da pessoa que deseja morrer. Por vezes, a eutanásia voluntária é praticamente indistinguível do suicídio assistido. No livro *_Jean.s Way*, Derek Humphry conta como a sua mulher, Jean, a morrer de cancro, lhe pediu que lhe facultasse os meios de pôr fim à vida com rapidez e sem dor. Viran que a situação se aproximava e discutiram-na com antecedência. Derek conseguiu alguns comprimidos e deu-os a Jean, que os tomou e morreu pouco depois. O médico Jack Kevorkian, patologista de Michigan, deu um passo em frente quando construiu uma "máquina de suicídio" para auxiliar os doentes em estado terminal a cometer suicídio. A sua máquina consistia numa haste metálica com três frascos diferentes ligados a um tubo do tipo dos que se usam para efectuar uma ligação intravenosa. O médico insere o tubo na veia do paciente, mas nesta fase apenas uma solução salina inofensiva pode passar pelo tubo. O paciente pode então accionar um interruptor que faz passar pelo tubo um medicamento indutor do coma, que é automaticamente seguido de uma solução letal contida no terceiro frasco. Kevorkian anunciou que estava preparado para disponibilizar a máquina a qualquer doente terminal que desejasse utilizá-la. (O suicídio assistido não é ilegal no estado de Michigan.) Em Junho de 1990, Janet Adkins, que sofria da doença de Alzheimer, mas ainda tinha lucidez suficiente para tomar a decisão de pôr fim à sua vida, contactou Kevorkian e pô-lo a par da sua vontade de morrer, em vez de sofrer a deterioração lenta e progressiva que a doença acarreta. Kevorkian esteve a seu lado enquanto Janet Adkins utilizava a sua máquina e depois relatou o caso à polícia. Na sequência deste episódio foi acusado de homicídio, mas o juiz não aceitou que a acusação seguisse para julgamento, com base no facto de ter sido Janet Adkins quem provocou a sua própria morte. No ano seguinte, Kevorkian disponibilizou a sua máquina a mais duas pessoas, que a usaram para pôr fim à vida (1).



(2) Kevorkian foi de novo acusado de homicídio e de fornecer uma substância proibida, em relação aos dois últimos casos, mas mais uma vez a acusação não foi aceite.



Noutros casos, as pessoas que pretendem pôr fim à vida podem não ser capazes de se suicidar. Em 1973, George Zygmaniak ficou ferido num acidente de moto perto da sua casa de Nova Jérsia. Foi levado para o hospital, onde se verificou que tinha ficado totalmente paralisado do pescoço para baixo. Sofria também de muitas dores. Disse ao médico e ao irmão, Lester, que não queria continuar a viver nessas condições. Implorou a ambos que o matassem. Lester interrogou o médico e o pessoal hospitalar sobre as possibilidades de recuperação de George;

:, disseram-lhe que eram nulas. Conseguiu então introduzir uma pistola no hospital e disse ao irmão: "Estou aqui para acabar com o teu sofrimento, George. É isso que queres?" George, que não podia falar devido a uma operação para o ajudar a respirar melhor, disse que sim com a cabeça. Lester disparou um tiro à queima roupa nas têmporas. O caso Zygmaniak constitui um exemplo claro de eutanásia voluntária, embora sem alguns dos procedimentos de salvaguarda propostos pelos apoiantes da legalização da eutanásia voluntária. Por exemplo, as opiniões médicas sobre as perspectivas de recuperação do paciente foram obtidas somente de um modo informal. Tão-pouco houve uma tentativa cuidadosa de estabelecer, perante testemunhas independentes, que o desejo de George de morrer era inflexível e racional, baseado na melhor informação disponível sobre o seu estado de saúde. A morte não foi provocada por um médico. Uma injecção teria sido menos perturbadora para as outras pessoas que um tiro. Mas Lester Zygmaniak não dispunha dessas opções, porque a lei do estado de Nova Jérsia, como a da maioria dos estados americanos, considera a morte misericordiosa um homicídio e, se divulgasse os seus planos, não teria podido levá-los avante. A eutanásia pode ser voluntária mesmo quando uma pessoa não é capaz de indicar, ao contrário de Jean Humphry, Janet Adkins e George Zygmaniak, a sua vontade de morrer até ao momento em que os comprimidos são engolidos, o interruptor accionado ou o gatilho premido. Uma pessoa pode, estando de boa saúde, fazer um pedido escrito de eutanásia se, devido a um acidente ou a doença, chegar a uma situação em que é incapaz de tomar ou de exprimir a decisão de morrer, e sofre de dores ou se encontra privada das suas faculdades mentais e sem esperança razoável de recuperação. Ao matar uma pessoa que fez um tal pedido, que o reafirmou de tempos a tempos e que está agora numa das situações descritas, pode-se verdadeiramente defender que se age com o seu consentimento. Há agora um país no qual os médicos podem auxiliar abertamente os seus pacientes a morrer de uma forma pacífica e digna. Na Holanda, uma série de casos em tribunal no decurso dos anos 80 sancionou o direito de um médico auxiliar o seu :, doente a morrer, mesmo que essa assistência implique dar-lhe uma injecção letal. Os médicos na Holanda que cumpram determinadas directivas (que serão descritas mais à frente neste capítulo) podem agora praticar a eutanásia abertamente e declará-lo na certidão de óbito sem receio de perseguição. Calculou-se que cerca de 2300 mortes por ano resultam de eutanásia efectuada deste modo.



Eutanásia involuntária



Considerarei que a eutanásia é involuntária quando a pessoa que se mata é capaz de consentir na sua própria morte, mas não o faz, quer porque não lhe perguntam, quer porque lhe perguntam e prefere continuar a viver. Admito que esta definição agrupa dois casos diferentes na mesma categoria. Há uma diferença significativa entre matar alguém que prefere continuar a viver e matar alguém que não consentiu em ser morto, mas que, se lhe perguntassem, teria consentido. Na prática, porém, é difícil imaginar casos em que uma pessoa é capaz de consentir e

teria consentido se lhe tivessem perguntado, mas a quem ninguém fez a pergunta. Por que razão não iremos perguntar-lhe? Somente nas situações mais bizarras se poderia conceber uma razão para não obter o consentimento de uma pessoa que esteja ao mesmo tempo capaz e desejosa de consentir. Matar alguém que não consentiu em ser morto pode considerar-se correctamente eutanásia apenas quando o motivo para essa morte é o desejo de evitar sofrimento insuportável à pessoa que é morta. É evidente que seria estranho que alguém, agindo por este motivo, não respeitasse a vontade da pessoa por mor de quem se age assim. Os casos genuínos de eutanásia involuntária são muito raros.





Eutanásia não voluntária



Estas duas definições deixam lugar a um terceiro tipo de eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte, a eutanásia não seria nem voluntária nem involuntária, mas não voluntária. Aqueles que são: incapazes de dar consentimento incluiriam bebés com doenças incuráveis ou graves deficiências e pessoas que, devido a acidentes, doença ou idade avançada, perderam permanentemente a capacidade de compreender as questões em causa, sem terem previamente pedido nem rejeitado a eutanásia efectuada nessas circunstâncias. Diversos casos de eutanásia não voluntária chegaram aos tribunais e à imprensa popular. Eis um exemplo. Louis Repouille tinha um filho que era descrito como um "imbecil incurável" tinha estado preso à cama desde tenra infância e era cego há cinco anos (*).



(*) "Imbecil" era o termo então usado para pessoas com debilidades mentais profundas, com um _Q_I muito baixo (entre 25 e 50). (*_N. do R. C.*)

 Estas questões levantam dificuldades técnicas para a legislação da eutanásia voluntária, mas não representam objecções aos seus princípios éticos subjacentes; mas, apesar de tudo, não deixam de ser dificuldades sérias. As directivas promulgadas pelos tribunais da Holanda procuraram resolvê-las propondo que a eutanásia só seja aceitável se:



For efectuada por um médico; O paciente tiver explicitamente solicitado a eutanásia de uma forma que não deixe qualquer dúvida quanto ao seu desejo de morrer; A decisão do paciente for bem informada, livre e definitiva; O paciente tiver um estado de saúde irreversível que cause sofrimento físico ou mental prolongado que o paciente ache insuportável;  Não existir qualquer alternativa razoável (razoável do ponto de vista do paciente) para aliviar o seu sofrimento; O médico tiver consultado outro médico independente que esteja de acordo com a sua opinião.



A eutanásia efectuada nestas condições conta com um forte apoio da Real Associação Médica Holandesa e do público em geral na Holanda. Estas directivas tornam o homicídio disfarçado de eutanásia bastante improvável e não há indícios de um aumento da taxa de homicídios na Holanda. Diz-se com frequência, em debates sobre a eutanásia, que os médicos podem enganar-se. Em alguns raros exemplos, pacientes a quem foram diagnosticadas doenças incuráveis por dois médicos competentes sobreviveram e gozaram anos de boa saúde. Possivelmente, a legalização da eutanásia significaria, ao longo dos anos, a morte de algumas pessoas que teriam, se assim não fosse, recuperado da sua doença imediata e vivido mais alguns anos. Este não é, porém, o argumento arrasador contra a eutanásia, como algumas pessoas pensam. Ao número muito pequeno de mortes desnecessárias que podiam ocorrer no caso da legalização da eutanásia devemos contrapor a grande quantidade de dor e de aflição que sofrerão os pacientes que se encontram de facto em fase terminal de doenças se a eutanásia não for legalizada. Uma vida mais longa não é um bem assim tão supremo que supere todas as restantes considerações. (Se fosse, haveria numerosos meios mais eficazes de prolongar a vida -- como proibir o tabaco ou reduzir os limites de velocidade para 40 quilómetros por hora -- do que proibir a eutanásia voluntária.) A possibilidade de dois médicos diferentes poderem cometer o mesmo erro significa que a pessoa que opta pela eutanásia decide sobre o balanço das probabilidades e desiste de uma possibilidade muito pequena de sobrevivência, de modo a evitar sofrer o que irá quase certamente terminar na morte. Pode tratar-se de uma escolha perfeitamente racional. A probabilidade é o guia da vida -- e também da morte. Contra isto, algumas pessoas replicarão que uma melhoria dos cuidados dispensados aos doentes em fase terminal eliminou a dor e tornou a eutanásia voluntária desnecessária. Elisabeth Kübler-_Ross, cujo

livro *_On Death and Dying* é talvez a obra mais conhecida sobre a assistência a pessoas que estão às portas da morte, afirmou que nenhum dos seus pacientes pediu a eutanásia. Se receberem atenção pessoal e a medicação correcta, prossegue, as pessoas acabam por aceitar a morte e morrem em paz e sem dor. Talvez Kübler-_Ross tenha razão. Talvez seja actualmente possível eliminar a dor. Em quase todos os casos pode mesmo ser possível fazê-lo de uma forma tal que deixe os pacientes na posse das suas faculdades racionais e livres de vómitos, náuseas ou outros efeitos secundários indesejáveis. Infelizmente, só uma minoria de pacientes em estado terminal recebe hoje esse tipo de cuidados. Porém, a dor física não é o único problema. Pode haver também outras circunstâncias angustiantes, como ossos tão frágeis que se fracturam com movimentos súbitos, náuseas e vómitos incontroláveis, inanição lenta devida ao avanço de um cancro, incontinência fecal e urinária, dificuldades respiratórias, etc. O doutor Timothy Quill, médico de Rochester, Nova Iorque, descreveu como receitou comprimidos para dormir a "Diane", uma paciente que sofria de uma forma grave de leucemia, sabendo que ela queria os comprimidos para pôr fim à vida. O doutor Ouill conhecia Diane há muitos anos e admirava a sua coragem em lidar com doenças graves anteriores. Num artigo publicado na revista *_New England Journal of Medicine*, escreve:



Era extraordinariamente importante para Diane manter o domínio de si própria e a dignidade durante o tempo de vida que lhe restava. Quando isso deixou de ser possível, desejava claramente morrer. Como antigo director de um programa de cuidados especiais para doentes em estado terminal, eu sabia como usar analgésicos para manter os pacientes tranquilos e aliviar-lhes o sofrimento. Expliquei-lhe a filosofia dos cuidados de conforto em que acredito com grande convicção. Embora Diane compreendesse e agradecesse, conhecera pessoas que se arrastavam naquilo que ela considerava um bem-estar relativo e ela não queria nada disso. Quando o momento chegou, quis pôr fim à vida da forma menos dolorosa possível. Conhecendo o seu desejo de independência e a sua decisão de se manter lúcida, pensei que este pedido fazia todo o sentido [...] Pela nossa conversa tornou-se claro que a presença do seu medo de uma agonia prolongada iria interferir com a vontade de Diane de tirar o máximo partido do tempo que lhe restava enquanto não encontrasse uma forma segura de garantir a sua morte.



Nem todos os pacientes que desejam morrer têm a sorte de encontrar um médico como Timothy Quill. Betty Rollin descreveu no seu comovente livro *_Last Wish* a forma como a sua mãe :, foi atingida por um cancro nos ovários que alastrou a outras partes do corpo. Certa manhã a mãe disse-lhe:



Tive uma vida maravilhosa, mas agora chegou ao fim, ou devia chegar. Não tenho medo de morrer, mas tenho medo desta doença, do que me está a fazer [...] Nunca mais vou ter alívio. Só náuseas e dores [...] Já não haverá mais quimioterapia. Já não há qualquer tratamento. O que é que me vai acontecer? Eu sei. Vou morrer a pouco e pouco [...] Não quero isso [...] Quem ficaria a ganhar se eu fosse definhando de dia para dia? Se fosse para bem dos meus filhos, não hesitaria um momento. Mas não vai ser bom para ti [...] Não faz qualquer sentido

esta lenta agonia. Nunca gostei de fazer coisas sem sentido. Tenho de acabar com isto.



Betty Rollin teve muita dificuldade em ajudar a mãe a levar avante o seu desejo: "Médico após médico recusava os nossos pedidos de ajuda (Quantos comprimidos? Quais?)". Após a publicação do livro sobre a morte da sua mãe recebeu centenas de cartas, muitas das quais de pessoas ou de familiares dessas pessoas que tentaram morrer e falharam, ficando a sofrer ainda mais. Os médicos recusaram ajudar muitas dessas pessoas porque, embora o suicídio seja legal em muitas jurisdições, o suicídio assistido não o é. Talvez um dia seja possível tratar todos os doentes terminais e pacientes incuráveis de uma forma tal que ninguém requeira a eutanásia e a questão deixe de se pôr; mas de momento não passa de um ideal utópico e não constitui, de forma alguma, um motivo para recusar a eutanásia a todos aqueles que têm de viver e de morrer em condições muito menos confortáveis. Em todo o caso, é altamente paternalista dizer a pacientes às portas da morte que são agora tão bem tratados que não precisam da opção da eutanásia. Seria mais consentâneo com o respeito pela liberdade e pela autonomia individuais legalizar a eutanásia e deixar os pacientes decidir se a sua situação é insuportável ou não. Será que estes argumentos em favor da eutanásia dão demasiado peso à liberdade e à autonomia individuais? Afinal de contas, não permitimos que as pessoas façam escolhas livres em questões como, por exemplo, tomar heroína. Trata-se de uma restrição da :, liberdade, mas, na opinião de muitas pessoas, uma das restrições que se podem justificar com bases paternalistas. Se evitar que as pessoas se tornem heroinómanas constitui um paternalismo justificável, por que razão não o será evitar que as pessoas se suicidem? A questão é razoável porque o respeito pela liberdade individual pode ir longe de mais. John Stuart Mill pensava que o estado nunca devia interferir com o indivíduo, excepto para impedir danos a terceiros. O bem individual, pensava Mill, não representa uma razão adequada à intervenção do Estado. Mas Mill pode ter tido uma opinião demasiado elevada da racionalidade do ser humano. Pode ser ocasionalmente um bem evitar que as pessoas façam escolhas que obviamente não se baseiam na racionalidade e que podemos ter a certeza de que mais tarde se irão lamentar. No entanto, a proibição da eutanásia voluntária não se pode justificar com bases paternalistas, pois a eutanásia voluntária é um acto para o qual há boas razões. A eutanásia voluntária só ocorre quando, tanto quanto a medicina sabe, uma pessoa sofre de uma doença incurável e dolorosa ou extremamente penosa. Nessas circunstâncias não se pode dizer que optar por uma morte rápida seja obviamente irracional. A força da argumentação em favor da eutanásia voluntária reside na sua combinação de respeito pelas preferências ou autonomia daqueles que se decidem pela eutanásia e na base racional inequívoca da própria decisão.



A não justificação da eutanásia involuntária



A eutanásia involuntária assemelha-se à voluntária por envolver a morte de quem tem capacidade para consentir a sua própria morte. Difere no facto de as pessoas

em causa não consentirem. Esta diferença é crucial, como o argumento da secção anterior põe em evidência. As quatro razões contra a morte provocada de seres autoconscientes aplicam-se quando a pessoa em causa não escolhe morrer. Será alguma vez possível justificar a eutanásia involuntária numa base paternalista, para poupar alguém à extrema agonia? Poderíamos talvez imaginar um caso em que a agonia fosse tão grande e com um tal grau de certeza que o peso das considerações :, utilitaristas em favor da eutanásia superasse as quatro razões contra a morte provocada de seres autoconsciente Contudo, para tornar esta decisão, alguém teria de ter a certeza de ser capaz de ajuizar, melhor do que uma pessoa pode fazê-lo por si quando a sua vida se torna tão má que não vale a pena vivê-la. Não parece que tenhamos alguma vez justificação para ter tanta confiança nos nossos juízos sobre se a vida de outra pessoa, para essa pessoa, vale ou não a pena ser vivida. O facto de outra pessoa desejar continuar a viver constitui uma boa prova de que a sua vida vale a pena ser vivida. Que melhor prova poderíamos ter? O único tipo de caso em que o argumento paternalista é de alguma forma plausível é aquele em que a pessoa a ser morta não se apercebe da agonia que irá sofrer no futuro e, se não lhe provocarmos a morte naquele momento, terá de suportar tudo até ao fim. Nesta base, poder-se-ia provocar a morte a uma pessoa que caiu nas mãos de sádicos homicidas (embora ela ainda não o saiba) que a irão torturar até à morte. Felizmente estes exemplos são muito mais correntes na ficção do que na realidade. Se na vida real é improvável que encontremos alguma vez um único caso de eutanásia involuntária justificável, talvez seja melhor afastar do nosso espírito os casos fantasiosos em que podemos imaginar que a defendemos e tratar a regra contra a eutanásia involuntária, para todos os efeitos práticos, como absoluta. Neste caso é de novo relevante a distinção de Hare entre os níveis crítico e intuitivo de raciocínio moral (veja-se o capítulo 4). O exemplo descrito no parágrafo anterior é um daqueles em que, se raciocinarmos ao nível crítico, podemos ser levados a considerar justificável a eutanásia involuntária; mas ao nível intuitivo, o nível do raciocínio moral que aplicamos na vida quotidiana, podemos dizer simplesmente que a eutanásia só se justifica se as pessoas a quem é aplicada ou



1. Não possuem a aptidão de consentir a morte por não possuírem a capacidade de compreender a escolha entre a continuidade da sua existência e a não existência; ou 2. Têm a capacidade de escolher entre a continuidade da sua própria vida e a morte e tomam uma decisão informada, voluntária e resoluta de morrer.





Eutanásia activa e passiva



As conclusões a que chegámos neste capítulo chocarão um grande número de leitores, porque violam um dos princípios mais fundamentais da ética ocidental -- a proibição de matar seres humanos inocentes. Já fiz uma tentativa para mostrar que as minhas conclusões representam, pelo menos no caso dos recém-nascidos

deficientes, um afastamento da prática existente menos radical do que se poderia supor. Assinalei que muitas sociedades permitem que uma mulher grávida mate um feto num estado de gravidez avançada se houver um risco significativo de o feto ser deficiente; e, como a linha que separa um feto desenvolvido de um bebé recém-nascido não é uma divisória moral crucial, torna-se difícil ver por que motivo é pior matar um recém-nascido que se sabe que é deficiente. Nesta secção irei defender a existência de uma outra área da prática médica aceite que não é intrinsecamente diferente das práticas que os argumentos deste capítulo permitirão. Já referi um defeito de nascença chamado "espinha bífida", na qual o bebé nasce com uma abertura na coluna, expondo a espinal medula. Até 1957, a maioria destas crianças morria cedo, mas nesse ano os médicos começaram a utilizar um novo tipo de válvula para drenar o excesso de fluido que se acumulava na cabeça nestes casos. Em alguns hospitais tornou-se prática corrente fazerem-se todos os esforços para salvar os bebés com espinha bífida. Em resultado disso, passaram a morrer poucos recém-nascidos com essa doença -- mas, dos que sobreviviam, a maioria ficava gravemente deficiente, com paralisias, múltiplas deformações das pernas e da coluna e incontinência urinária e fecal. As deficiências mentais também eram comuns. Em suma, a existência dessas crianças causava grandes dificuldades às suas famílias e era muitas vezes um horror para as próprias crianças. Depois de estudar os resultados desta política de tratamento activo, um médico britânico, John Lorber, propôs que, em vez de se tratarem todos os casos de espinha bífida, apenas se deviam tratar aqueles que apresentassem formas atenuadas da doença. (Propôs que a decisão final coubesse aos pais, mas os pais :, normalmente aceitam as recomendações dos médicos.) O princípio do tratamento selectivo é agora amplamente aceite em muitos países e na Grã_Bretanha foi reconhecido como legítimo pelo Ministério da Saúde e Segurança Social. Em resultado disso, sobrevive um menor número de crianças com espinha bífida para além da primeira infância, mas aquelas que sobrevivem são as que, em grande medida, possuem deficiências físicas e mentais de menor gravidade relativa. A política de selecção é, portanto, desejável. Então o que acontece com as crianças que não são seleccionadas para tratamento? Lorber não disfarça o facto de, nesses casos, haver a esperança de que a criança morra depressa e sem sofrimento. É para atingir este objectivo que não se efectuam operações cirúrgicas nem outras formas de tratamento, embora a dor e o sofrimento sejam aliviados na medida do possível. Se a criança apanha uma infecção, o tipo de infecção que numa criança normal seria rapidamente combatida com antibióticos, estes não lhe são administrados. Como a sobrevivência da criança não é desejada, não se tomam medidas para evitar uma complicação fatal, facilmente curável por técnicas clínicas correntes.


TEMAS DE ENSAIO - POBREZA

Consideremos se temos a obrigação de ajudar aqueles cuja vida está em perigo e, em caso afirmativo, o modo como esta obrigação se aplica à situação mundial actual.

A obrigação de ajudar

O argumento a favor da obrigação de ajudar

Na minha universidade, o percurso que vai da biblioteca ao anfiteatro das Humanidades passa por um lago ornamental pouco profundo. Suponhamos que, ao ir dar uma aula, me apercebo de que uma criança caiu e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama e cancelar a aula ou atrasá-la até encontrar um meio de mudar de roupa; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem
com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo. Este princípio é incontroverso. Terá obviamente o apoio dos consequencialistas; mas os não consequencialistas devem também aceitá-lo, pois o preceito de impedir o mal só se aplica quando nada de importância comparável está em risco. Assim, o princípio não pode levar ao tipo de actos que os não consequencialistas categoricamente desaprovam -- graves violações dos direitos individuais, injustiça, quebra de promessas, etc. Se os não consequencialistas considerarem que qualquer destes actos é comparável, em importância moral, ao mal que queremos evitar, irão automaticamente considerar que o princípio não se aplica naqueles casos em que o mal só pode ser evitado violando direitos, provocando injustiça, quebrando promessas, ou seja o que for que esteja em causa. A maioria dos não consequencialistas defende que devemos evitar o mal e promover o bem. O seu desacordo com os consequencialistas reside na sua insistência em que este não é o único princípio ético fundamental; o facto de ser um princípio ético não é negado por nenhuma teoria ética plausível. Apesar de tudo, o aspecto incontroverso do princípio segundo o qual devemos evitar que o mal aconteça, quando podemos fazê-lo sem nada sacrificar que tenha uma importância moral comparável, é enganador. Se fosse levado a sério e orientasse as nossas acções, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão correctos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um acto de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer. É este o argumento em favor da obrigação de ajudar. De um modo mais formal, poderia ser formulado como se segue:

Primeira premissa: Se pudermos impedir que um mal aconteça sem sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo; Segunda premissa: A pobreza absoluta é um mal; Terceira premissa: Há alguma pobreza absoluta que podemos impedir que aconteça sem sacrificar nada de importância moral comparável; Conclusão: Temos o dever de impedir alguma pobreza absoluta.

A primeira premissa é a premissa moral substancial na qual assenta o argumento; e tentei provar que é aceite por pessoas que defendem várias posições éticas. É improvável que a segunda premissa seja contestada. A pobreza absoluta está, como disse Mc_Namara, "abaixo de qualquer definição razoável de decência humana" e seria difícil encontrar uma perspectiva ética plausível que não a
considerasse um mal. A terceira premissa é mais controversa, apesar de estar cautelosamente formulada. Defende apenas que se pode impedir alguma pobreza absoluta sem o sacrifício de seja o que for de importância moral comparável. Evita assim a objecção de que toda a ajuda que eu puder dar não passa de "uma gota no oceano", porque a questão não é a de saber se a minha contribuição pessoal causará alguma impressão perceptível na pobreza mundial no seu todo (claro que não), mas se impede alguma pobreza. _é tudo o que o argumento precisa para sustentar a sua conclusão, dado que a segunda premissa afirma que qualquer pobreza absoluta é um mal, e não a quantidade total de pobreza absoluta. Se, sem sacrificar seja o que for de importância moral :, comparável, pudermos proporcionar a uma única família os meios de sair da pobreza absoluta, a terceira premissa é satisfeita. Deixei por examinar a noção de importância moral para provar que o argumento não depende de quaisquer valores ou princípios éticos específicos. Penso que a terceira premissa é verdadeira para a maioria das pessoas que vivem em países industrializados, em qualquer perspectiva defensável do que é moralmente importante. A nossa abastança significa que dispomos de rendimento que podemos dispensar sem pormos em causa as necessidades básicas da vida e podemos usar esse rendimento para reduzir a pobreza absoluta. O quanto achamos que temos a obrigação de dar depende daquilo que considerarmos de importância moral comparável à pobreza que evitamos: roupas de marca, jantares caros, uma aparelhagem de som sofisticada, férias no estrangeiro, um (segundo?) carro, uma casa maior, escolas privadas para os nossos filhos, etc. Para um utilitarista é provável que nada disto tenha uma importância moral comparável à diminuição da pobreza absoluta; e os que não são utilitaristas, se aceitarem o princípio da universalizabilidade, têm de aceitar que pelo menos algumas destas coisas têm um significado moral muito inferior à pobreza absoluta que poderia ser evitada com o dinheiro que custam. De modo que a terceira premissa parece verdadeira de qualquer perspectiva ética plausível --embora a quantidade exacta de pobreza absoluta que pode ser evitada sem se sacrificar seja o que for de importância moral comparável varie de acordo com a perspectiva ética de cada um.


*_Cuidar dos nossos*. A todo aquele que tenha trabalhado para aumentar o valor da ajuda internacional se deparou o argumento de que devemos cuidar dos que nos estão mais próximos, das nossas famílias e depois dos pobres do nosso país, antes de pensarmos na pobreza dos países distantes. Não há dúvida que preferimos instintivamente ajudar aqueles que estão perto de nós. Poucas pessoas seriam capazes de ficar a ver uma criança a afogar-se; mas muitas conseguem ignorar a fome em _áfrica. Porém, a questão não é o que :, costumamos fazer, mas o que devemos fazer; e é difícil encontrar uma justificação moral sólida para a perspectiva de a distância ou a condição de membro de uma comunidade introduzir uma diferença crucial nas nossas obrigações. Consideremos, por exemplo, as afinidades raciais. Será que as pessoas de origem europeia devem ajudar os europeus pobres antes de ajudarem os africanos
pobres? A maior parte das pessoas rejeitaria esta hipótese sem pestanejar e a nossa discussão do princípio da igualdade na consideração de interesses, no capítulo 2, mostrou por que razão o devemos fazer; as necessidades alimentares das pessoas nada têm a ver com a sua raça e, se os Africanos precisam mais de comida que os Europeus, seria uma violação do princípio da igualdade na consideração de interesses dar preferência aos Europeus. O mesmo se aplica à cidadania ou à nacionalidade. Todos os países ricos possuem alguns cidadãos relativamente pobres, mas a pobreza absoluta limita-se em grande parte aos países pobres Aqueles que vivem nas ruas de Calcutá ou na região árida do Sael, em _áfrica, encontram-se num estado de pobreza desconhecido no Ocidente. Nestas circunstâncias, seria um mal decidir que apenas aqueles que têm a sorte de pertencer à nossa própria comunidade partilhariam da nossa abundância. Sentimos as obrigações de parentesco com mais intensidade do que as de cidadania. Que pais dariam a outra pessoa a sua última tigela de arroz se os seus filhos estivessem com fome? Fazê-lo pareceria pouco natural, contrário à nossa natureza como seres biologicamente evoluídos -- embora a questão de saber se seria um mal ou não seja uma outra questão. Em todo o caso, não estamos perante uma tal situação, mas perante uma em que os nossos filhos estão bem alimentados, bem vestidos, com um bom ensino e agora gostariam de ter novas bicicletas, uma aparelhagem ou o seu próprio carro. Nestas circunstâncias, qualquer obrigação especial que pudéssemos ter para com os nossos filhos já foi satisfeita e as necessidades dos estranhos exercem mais força sobre nós. O elemento de verdade na perspectiva de que devíamos em primeiro lugar tomar conta dos nossos reside na vantagem de um reconhecido sistema de responsabilidades. Quando as :, famílias e as comunidades tomam conta dos seus membros mais pobres, os laços de afecto e a relação pessoal atingem fins que, de outro modo, exigiriam uma enorme burocracia impessoal. Daí que seja absurdo propor que daqui para a frente nos consideremos igualmente responsáveis pelo bem-estar de toda a gente em todo o mundo; mas não é isso que propõe o argumento em prol da obrigação de ajudar. Aplica-se apenas quando existem pessoas a viver num estado de pobreza absoluta e outros podem ajudar sem sacrificar seja o que for de importância moral comparável. Permitir que alguém da nossa família se afundasse na pobreza absoluta seria sacrificar algo de importância comparável; e, antes de se atingir esse ponto, a ruptura do sistema de responsabilidade familiar e comunitária seria um factor que faria o prato da balança pender em favor de um pequeno grau de preferência pela família e pela comunidade. Este pequeno grau de preferência, porém, é decisivamente ultrapassado pelas discrepâncias existentes em riqueza e nobreza.

*_Direitos de propriedade*. Terão as pessoas direito à propriedade privada, um direito que contradiz a perspectiva segundo a qual têm a obrigação de dar alguma da sua riqueza aos que vivem em pobreza absoluta? De acordo com algumas teorias dos direitos (como a de Robert Nozick), desde que alguém tenha adquirido a propriedade sem o uso de meios injustos, como a força ou a fraude, tem direito a uma riqueza enorme, enquanto outros morrem à mingua. Esta concepção individualista de direitos é contrariada por outras perspectivas, como as primeiras
doutrinas cristãs, que se podem encontrar nas obras de Tomás de Aquino, defendendo que, como a propriedade existe para a satisfação de necessidades humanas, "tudo o que o homem possa ter em superabundância é devido, por direito natural, ao pobre para seu sustento". Um socialista também achará por certo que a riqueza pertence à comunidade, e não ao indivíduo, enquanto os utilitaristas, quer sejam socialistas, quer não, estariam dispostos a suprimir os direitos de propriedade para evitar maiores males. Será que o argumento em favor da obrigação de ajudar os outros pressupõe então uma destas teorias dos direitos de :, propriedade, e não uma teoria individualista como a de Nozick? Não necessariamente. Uma teoria dos direitos de propriedade pode insistir no nosso *direito* de conservar riqueza sem se pronunciar sobre se os ricos *devem* dar aos pobres. Nozick, por exemplo, rejeita o uso de meios coercivos, como os impostos, para redistribuir o rendimento, mas sugere que podemos atingir os fins que julgamos moralmente desejáveis por meios voluntários. Logo, Nozick rejeitaria a afirmação de que os ricos têm a "obrigação" de dar aos pobres, na medida em que isso implicasse que os pobres têm o direito à ajuda dos ricos; mas poderia aceitar que dar é algo que se deve fazer e que não dar, embora seja um direito, é um mal -- porque uma vida ética vai para além do respeito pelos direitos dos outros. O argumento em favor da obrigação de ajudar pode subsistir, com pequenas modificações, mesmo que aceitemos uma teoria individualista dos direitos de propriedade. Em todo o caso, porém, penso que não devemos aceitar uma tal teoria. Deixa demasiado ao acaso para poder ser uma perspectiva ética aceitável. Por exemplo, aqueles cujos antepassados por acaso habitavam alguns ermos arenosos em volta do golfo Pérsico são hoje fabulosamente ricos, porque há petróleo no subsolo dessas areias, enquanto aqueles cujos avós se estabeleceram em terras melhores a sul do Sara vivem na pobreza absoluta, devido à seca e a más colheitas. Pode esta distribuição ser aceitável de um ponto de vista imparcial? Se nos imaginarmos em vias de iniciar a vida como cidadãos do Bahrein ou do Chade, sem sabermos qual, aceitaríamos o principio segundo o qual os cidadãos do Bahrein não têm qualquer obrigação de ajudar quem vive no Chade?