quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A especificidade da Filosofia




RADICALIDADE


“Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, são boas ou más.” 29b

Radicalidade: Questionar o princípio das nossas crenças de modo a compreender o seu fundamento. Se esse princípio não tiver fundamento então a crença também não o tem. Ainda por pensar que se sabe o que não se sabe. Demonstrar que o saber não é para deter mas para procurar. A radicalidade de Sócrates reside nessa insatisfação.
Essa é também uma característica da Filosofia.

Radical opõe-se a superficial. A filosofia não se contenta com o que parece, com as aparências mas quer ir à raiz dos problemas.
O termo radical é utilizado desde os filósofos gregos como sinónimo de princípio, causa, razão, fundamento.
A filosofia procura ser um saber radical, isto é, busca os fundamentos. Para a filosofia nada está definitivamente aceite ou é inquestionável. Há sempre lugar para as interrogações radicais.


AUTONOMIA:

E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a qualquer outro povo, e impedir que muitos actos contrários à justiça e às leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: quem combate verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.” 19e

Autonomia: Sócrates demonstra a sua autonomia ao ousar desafiar os poderosos e sábios, os que se dizem sábios. Frente aos acusadores, em tribunal proclama a autonomia do pensamento, a sua liberdade para discordar do saber instituído, científico e religioso. Tal é uma característica da Filosofia.

Autonomia significa que a Filosofia é independente em relação a...
à ciência, ao senso comum, à religião, política, às ideologias, à autoridade ou tradição e em relação a tudo o que possa pôr em causa a liberdade de pensar por si mesmo.


HISTORICIDADE


“Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado, em quinto lugar, ao Tolo (sala redonda onde ficavam os prítanes), orderam-me que fosse à Salamina buscar o Leão de Salamina, para que fosse morto. Muitos factos desse género tinham sido ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir de infâmia quantos pudessem. Também naquele momento, não com palavras mas com factos, demonstrei de novo que a morte não me importava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não fosse indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim, importava-me acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento, não me intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quando saímos do Tolo, os outros quatro foram a Salamina e trouxeram Leão, e eu, ao contrário, afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu teria sido morto, se o governo não fosse derrubado pouco depois. E disso tendes testemunhas em grande número.” 20d

Historicidade: A vida social, a religião, a política, a ciência, a economia, as artes, etc., influenciam sempre o pensamento filosófico. Os filósofos e as filosofias são, de facto, efeito e causa. Efeito das múltiplas circunstâncias, das crenças, das instituições das políticas, etc., do seu tempo. São produto de todas as conquistas da humanidade ao longo da história. Por isso, quer o filósofo quer a filosofia são resultado do meio.
Por outro lado, as ideias dos filósofos fecundaram frequentemente a ciência, a arte, a política e até as lutas sociais. Sendo, neste caso, causa de diferentes transformações culturais e sociais.
A filosofia como actividade intelectual está assim inserida na história e tem a sua história, mas não se reduz a ela. Não se pode confundir a filosofia com a sua história, mas a filosofia é inseparável da sua história. A história da filosofia oferece-nos um manancial de experiências intelectuais e de aventuras do pensamento que continuam a interpelar-nos e a fazer-nos pensar. É esta capacidade interpelante da história da filosofia que a coloca numa situação diferente da história da ciência. O tempo desactualiza a ciência, nesta o mais recente é em regra mais válido. Será assim em filosofia?

O outro sentido da historicidade é mais técnico e mais filosófico: “Como conceito filosófico, historicidade é ‘o modo de ser histórico do espírito humano’. Traduz a temporalidade radical da existência humana, um traço fundamental de todo o humano, em oposição ao ser natural. (...) A historicidade penetra tudo o que o homem é e faz.

Afirmar a historicidade da filosofia, neste sentido, é afirmar que a experiência do homem e o seu pensar são finitos, que se realizam historicamente e que o tempo lhes imprime um carácter epocal específico.
A Filosofia é um saber histórico porque reflecte a época histórica em que ela é produzida.

UNIVERSALIDADE
"E, se algum de vós protestar e prometer cuidar , não o deixarei já, nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de que a possui, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho, forasteiro ou cidadão.” 29e


A universalidade da filosofia pode ser entendida em diferentes sentidos.
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Fala-se da universalidade da filosofia porque alguns dos seus problemas são universais, isto é, referem-se à existência do homem. Tais problemas, apesar de serem formulados por um filósofo exprimem inquietações e esperanças que são próprias da humanidade. O filósofo ao transmutar o vivido para o plano do pensado universaliza uma dada situação e enuncia-a como problema.

Num outro sentido quer dizer, que todos os homens são filósofos. Este sentido radica no facto de todo o homem ter razão. Tal universalidade conduziu à distinção entre um filosofar espontâneo e sistemático. Presente em todo o homem, e um filosofar sistemático, específico dos filósofos.

A Filosofia é um saber universal porque o seu objecto de estudo é a totalidade da experiência humana, podemos filosofar sobre tudo o que quisermos. Mas também é universal pois as suas questões colocam-se à humanidade em geral. A Filosofia também se distingue da ciência graças à sua universalidade, pois enquanto que o objecto de estudo da ciência é sempre parcelar o da Filosofia é total