quinta-feira, 23 de maio de 2019

Kant: a moral como disposição individual.




"De facto, estas leis ordenam absolutamente, seja qual for o seu resultado, mais ainda, obrigam até a dele abstrair totalmente, quando se trata de uma acção particular; e, por isso, fazem do dever o objecto do maior respeito, sem nos apresentar e propor um fim (e fim último), que teria porventura de constituir a recomendação delas e o móbil para cumprir o nosso dever. Todos os homens poderiam com isto ter bastante, se (como deviam) se ativessem unicamente à prescrição da razão pura na lei. Que necessidade têm de saber o resultado do seu fazer e deixar moral, que o curso do mundo suscitará? Basta-lhes que façam o seu dever; mesmo que com a vida terrena tudo acabasse e nesta, porventura, jamais coincidissem felicidade e dignidade."

Kant, A religião nos limites da simples Razão

Assim está justificada a independência entre a ação moral e os seus resultados. Pois a ação moral não é moral por causa do seu resultado, nem boa nem má, mas tem carácter moral unicamente por resultar de uma disposição da vontade do agente de se submeter a uma lei  que prescreve um dever absoluto, sem outro incentivo ou estímulo que não a dignidade de ser o criador da lei a que se submete. 

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Relatório Raquel Frutuoso

1. Resumo do texto
2. Notas sobre a biografia dos autores
3. Definição dos conceitos mais importantes
4. Comentário crítico

SOBRE A MORAL DEONTOLÓGICA DE KANT


“- Kant tinha desde o princípio a forte impressão de que a diferença entre o justo e o injusto tinha de ser mais do que uma questão de sentimentos. Nesse aspecto ele estava de acordo com os racionalistas, que tinham explicado que era inerente à razão humana distinguir o justo do injusto. Todos os homens sabem o que é justo e o que não é, e nós sabemo-lo não apenas porque o aprendemos, mas também porque é inerente à nossa razão. Kant achava que todos os homens tinham uma “razão prática” que nos diz sempre o que é justo e o que é injusto no domínio da moral.
- Então é inata?
 - A capacidade de distinguir o justo do injusto é tão inata como todos os outros atributos da razão. Todos os homens vêem os fenómenos como determinados causalmente – e também têm acesso à mesma lei moral universal. Esta lei moral tem a mesma validade absoluta que as leis físicas da natureza. Isso é tão fundamental para a nossa vida moral como é fundamental para a nossa vida racional que tudo tenha uma causa, ou que sete mais cinco sejam doze.
- E o que é que diz essa lei moral?
- Uma vez que precede qualquer experiência, é "formal". Significa que não está relacionada com possibilidades morais de escolha determinadas. É válida para todos os homens em todas as sociedades e em todos os tempos. Logo, não diz que tens de fazer isto ou aquilo nesta ou naquela situação. Diz como te deves comportar em todas as situações.
- Mas que sentido tem uma lei moral, se não nos diz como nos devemos comportar numa situação determinada?
-Kant formula a lei moral como imperativo categórico. Por isto, ele entende que a lei moral é "categórica", quer dizer, é válida em todas as situações. Além disso, é um "imperativo" e consequentemente uma "ordem" e absolutamente inevitável.
- Hm...
- Aliás, Kant formula o seu imperativo categórico de diversas formas. Primeiro, diz: “devíamos agir sempre de tal forma que pudéssemos desejar simultaneamente que a regra segundo a qual agimos fosse uma lei universal”.
- Quando faço alguma coisa, tenho de ter a certeza de que desejo que todos façam o mesmo na mesma situação.
- Exato. Só nessa altura ages de acordo com a tua lei moral interior. Kant também formulou o imperativo categórico da seguinte forma: devemos tratar os outros homens sempre como um fim em si e não como um meio para alguma outra coisa.
-Não podemos, portanto, "explorar" os outros para obtermos benefícios.
 -Não, porque todos os homens são um fim em si. Mas isso não é válido apenas para os outros, mas também para nós mesmos. Também não nos devemos explorar como meio para alcançar algo.
- Isso faz-me lembrar a "regra dourada": não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. -Sim, e isso é uma norma formal que abrange basicamente todas as possibilidades éticas de escolha. (…)
- Para Kant, a lei moral era tão absoluta e universalmente válida como, por exemplo, a lei da causalidade. Também não pode ser provada pela razão, mas é incontornável. Nenhum homem a contestaria.
 - Começo a ter a sensação de que estamos realmente a falar da consciência, porque todos os homens têm uma consciência.
-Sim, quando Kant descreve a lei moral, descreve a consciência humana. Não podemos provar o que a consciência diz, mas sabemo-lo. - Por vezes, sou muito simpático para com os outros simplesmente porque é vantajoso para mim. Desse modo, posso ser popular. - Mas quando és simpática para com os outros apenas para seres popular, não estás a agir de acordo com a lei moral. Talvez não estejas a observar a lei moral. Talvez estejas a agir numa espécie de acordo superficial com a lei moral - e isso já é alguma coisa -, mas uma ação moral tem de ser o resultado de uma superação de ti mesma. Só quando fazes algo porque achas ser teu “dever” seguir a lei moral é que podes falar de uma ação moral. Por isso, a ética de Kant é frequentemente chamada “ética do dever”.
- Eu posso achar ser meu dever juntar dinheiro para a Cruz Vermelha ou a Caritas. - Sim, e o importante é tu fazeres uma coisa porque a achas correta. Mesmo quando o dinheiro que tu juntaste se extravia ou nunca alimente as pessoas que devia alimentar, tu cumpriste a lei moral. Agiste com a atitude correta e, segundo Kant, a atitude é decisiva para podermos dizer que uma coisa é moralmente correta. Não são as consequências de uma ação que são decisivas. Por isso, também dizemos que a “ética de Kant é uma ética da boa vontade”.
 - Porque é que era tão importante para ele saber quando é que agimos por respeito à lei moral? Não é mais importante que aquilo que fazemos ajude os outros? - Sim, Kant concordaria, mas só quando sabemos que agimos por respeito à lei moral é que agimos em “liberdade”.
- Só obedecendo a uma lei é que agimos em liberdade? Isso não é estranho?
- Segundo Kant, não. Talvez ainda te lembres que ele "postulou" o livre arbítrio do homem. Esse é um ponto importante, porque Kant achava que todas as coisas seguem a lei da causalidade. Como é que podemos ter livre arbítrio assim?
-Não me perguntes.

Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Texto para relatório

A boa vontade
A primeira sentença do Fundamento de Kant afirma: “a única coisa que é incondicionalmente boa é uma boa vontade”. O argumento de Kant para isso é bastante plausível. Considere tudo o que você considera bom: saúde, riqueza, beleza, inteligência etc. Em todos os casos, você pode imaginar uma situação em que essa coisa boa não é boa, afinal de contas. Uma pessoa pode ser corrompida por sua riqueza. A saúde robusta de um valentão torna mais fácil para ele abusar de suas vítimas. A beleza de uma pessoa pode levá-la a se tornar vaidosa e falhar em desenvolver seus talentos. Até a felicidade não é boa se for a felicidade de um sádico torturar suas vítimas.
Uma boa vontade, ao contrário, diz Kant, é sempre boa em todas as circunstâncias.
Mas o que, exatamente, ele quer dizer com boa vontade? A resposta é bastante simples. Uma pessoa age de boa vontade quando faz o que faz porque acha que é seu dever: quando age a partir de um senso de obrigação moral.
Direito vs. Inclinação
Obviamente, não realizamos todos os pequenos atos que fazemos por um sentimento de obrigação. Na maior parte do tempo, estamos simplesmente seguindo nossas inclinações, agindo por interesse próprio. Não há nada de errado com isso. Mas ninguém merece crédito por perseguir seus próprios interesses. Isso vem naturalmente para nós, assim como acontece naturalmente com todos os animais. O que é notável sobre os seres humanos, porém, é que podemos, e às vezes, realizar uma ação a partir de motivos puramente morais. Por exemplo, um soldado atira-se em uma granada, sacrificando sua vida para salvar a vida dos outros. Ou menos dramaticamente, eu pago uma dívida como prometi, mesmo que isso me deixe sem dinheiro.
Aos olhos de Kant, quando uma pessoa escolhe livremente fazer a coisa certa só porque é a coisa certa a fazer, sua ação agrega valor ao mundo; acende-se, por assim dizer, com um breve brilho de bondade moral.
Saber qual é o seu dever
Dizer que as pessoas devem cumprir seu dever com um senso de dever é fácil. Mas como podemos saber qual é o nosso dever? Às vezes, podemos nos ver diante de dilemas morais nos quais não é óbvio qual ação está correta.
De acordo com Kant, no entanto, na maioria das situações, o dever é óbvio. E se formos incertos, podemos resolver isso refletindo sobre um princípio geral que ele chama de “Imperativo Categórico”. Esse, ele afirma, é o princípio fundamental da moralidade.
Todas as outras regras e preceitos podem ser deduzidas a partir desse. Ele oferece várias versões diferentes desse imperativo categórico. Um corre da seguinte forma:
“Aja apenas com base na máxima que você pode usar como lei universal”.
O que isso significa, basicamente, é que devemos nos perguntar: como seria se todos agissem da maneira que estou agindo? Eu poderia sinceramente e consistentemente desejar um mundo em que todos se comportassem dessa maneira? De acordo com Kant, se nossa ação é moralmente errada, não poderíamos fazer isso. Por exemplo, suponha que estou pensando em quebrar uma promessa. Eu poderia desejar um mundo em que todos quebrassem suas promessas quando mantê-las fosse inconveniente? Kant argumenta que eu não poderia querer isso, até porque em tal mundo ninguém faria promessas, pois todos saberiam que uma promessa não significava nada.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Texto para relatório

“O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?

(…) quem segue convicções éticas não convencionais vive, mesmo assim, de acordo com padrões éticos, *se pensar, por qualquer motivo, que o que faz é um bem*. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar. Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e, mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e continuar a pensar que as ações são um mal, mas a tentativa de justificação, bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma pessoa não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos rejeitar a sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que aquilo que faz respeite princípios morais convencionais. Podemos ir mais longe. Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth, contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a "ambição desmedida" o leva a cometê-lo, está a admitir que a ação não pode justificar-se eticamente. "Para eu poder ser rei em seu lugar" não é uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio; não é o tipo de razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as ações motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal comportamento me traz a mim. Tenho de me preocupar com um grupo mais vasto. Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma forma, universal. A "regra de ouro" atribuída a Moisés, que se encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século __XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático que, ao decidir sobre questões morais, "cada qual vale por um e ninguém por mais de um", enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria, deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária, na qual aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria critica Jürgen Habermas, que diferem em muitos aspetos dos seus colegas de expressão inglesa - e também entre si -, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.”
Peter Singer, Ética Prática, Prefácio, Gradiva, 1993