O que é a sociedade justa? Como
poderemos saber? Para começar, pensemos num exemplo bastante simples no qual
parece colocar-se uma questão de justiça. Suponhamos que duas pessoas – o
leitor e eu – estão a jogar póquer. Eu dou cartas e o leitor recebe-as e olha
para elas. Antes de ver o meu jogo, reparo numa carta – o ás de espadas – caída
no chão. Ao ver isto, proponho que anulemos a jogada e disponho-me a dar
novamente as cartas. Mas o leitor insiste em jogar. Discordamos, portanto. Que
devemos fazer?
Em última instância, é claro,
um de nós poderia vergar-se perante uma pressão superior, ou mesmo perante a
força física. Mas antes de chegarmos a vias de facto, devemos perceber que há
várias estratégias ao nosso dispor para tentarmos, se assim o quisermos, resolver
a questão determinando qual deveria ser o resultado justo. Uma delas, por
exemplo, poderia ser termos feito previamente um acordo, que cobrisse aquele
caso. (…)
Mas talvez – o mais provável –
não exista um verdadeiro acordo a que possamos recorrer. Que outra coisa
poderíamos fazer? Um segundo pensamento é solicitar o conselho de um
“espectador imparcial”. (…)
Mas, e se nas imediações não
estiver pessoa alguma com estas características? Uma terceira estratégia
consistiria em evocar alguém mentalmente – um espetador hipotético. “O que
diria o teu pai, se aqui estivesse?” (…)
Por fim, podíamos fazer apelo a
um acordo hipotético. Mentalmente, podíamos analisar o acordo que teríamos
feito se um de nós tivesse colocado a questão antes de o jogo começar. Talvez
eu consiga convencer o leitor de que, se tivéssemos discutido o assunto,
teríamos concordado em anular a jogada nestas circunstâncias. O leitor só
discorda porque está influenciado pelo jogo que tem na mão. (…) Isso não o
deixa ver a justiça da situação. Imaginar aquilo com que teria concordado antes
de ter o jogo na mão é uma forma de tentar filtrar a parcialidade originada
pelos seus próprios interesses. E é esta a ideia que Rawls adota na tentativa
de defesa dos seus princípios de justiça.
É claro que, se quisermos usar
o argumento do acordo hipotético para resolver os problemas da justiça, temos
de supor que o contrato hipotético ocorrerá em circunstâncias de algum modo
especiais. (…) Assim, pressupomos alguma ignorância. Nenhum de nós sabe o jogo
que lhe tocará. Se conseguirmos imaginar isto, ficaremos numa posição em que
não poderemos ser influenciados pelos nossos interesses particulares; ou seja,
pelo facto de termos ou não um bom jogo em mãos. Se não fizermos esta
abstração, a probabilidade de conseguirmos definir um acordo hipotético
torna-se diminuta.
Rawls, então, usa o argumento
do contrato hipotético para justificar os seus princípios de justiça.
Consequentemente, podemos dividir o projeto de Rawls em três elementos. O
primeiro é a definição das circunstâncias nas quais se realizará o acordo
hipotético; o segundo é o argumento de que os seus princípios de justiça seriam
escolhidos nessas circunstâncias; e o terceiro é a afirmação de que isto mostra
que aqueles são princípios de justiça corretos, pelo menos para regimes
democráticos modernos. Consideremos o primeiro destes elementos, as
circunstâncias do contrato, que Rawls designa como “posição original”. Que
ignorância ou que conhecimento precisamos de atribuir aos contratantes para se
tornar possível um acordo sobre justiça social?
Jonathan
Wolff (2004). Introdução à filosofia política. Gradiva, pp. 219-222.
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