sábado, 24 de junho de 2023
Rawls: justiça como equidade.
Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa conceção da justiça. Entre as características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição de atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e outras qualidades semelhantes. Parto inclusivamente do princípio de que as partes desconhecem as suas concepções do bem e as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão numa situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa, (...) isto justifica a designação "justiça como equidade": transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. Não decorre daqui que os conceitos de justiça e equidade sejam idênticos, tal como também não decorre da frase "a poesia como metáfora" que os conceitos de poesia e de metáfora o sejam.
John Rawls, Uma Teoria da justiça in Textos e problemas de Filosofia
quarta-feira, 7 de junho de 2023
Texto para resumo Miriam Vital 10A e Maria Clara 10I
Cena de Macbeth, Utah Shakespeare Festival’s 2019
Estrutura: Biografia dos autores, definição dos conceitos, resumo, conclusão e comentário
Tema: Os juízos éticos e morais
“O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão
ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de
outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de
fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua
decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de
acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?
(…) quem segue convicções éticas não convencionais vive,
mesmo assim, de acordo com padrões éticos, *se pensar, por qualquer motivo, que
o que faz é um bem*. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que
procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção
da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar.
Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e,
mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de
defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e
continuar a pensar que as ações são um mal, mas a tentativa de justificação,
bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para
o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma
pessoa não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos
rejeitar a sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que
aquilo que faz respeite princípios morais convencionais. Podemos ir mais longe.
Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a
justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em
termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth,
contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a "ambição
desmedida" o leva a cometê-lo, está a admitir que a ação não pode
justificar-se eticamente. "Para eu poder ser rei em seu lugar" não é
uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio; não é o tipo de
razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as ações motivadas
pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla
para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo
mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com
fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal
comportamento me traz a mim. Tenho de me preocupar com um grupo mais vasto.
Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a ideia de
que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma
forma, universal. A "regra de ouro" atribuída a Moisés, que se
encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz
que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso
semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos
interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos
pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do
mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que
eles nos fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural
universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas
segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis
universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida
por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica
dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século
__XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como
pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador
ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático
que, ao decidir sobre questões morais, "cada qual vale por um e ninguém
por mais de um", enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo
do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria,
deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária, na qual
aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos
princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o
existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria critica Jürgen
Habermas, que diferem em muitos aspetos dos seus colegas de expressão inglesa -
e também entre si -, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.”
Peter Singer, Ética Prática, Prefácio, Gradiva,
1993
segunda-feira, 5 de junho de 2023
Texto para resumo Tiago Ramos 10A, Amin Assufo 10I
Analisemos agora uma experiência mental: suponhamos que, ao reunir-nos para definir os princípios, não saibamos a qual categoria pertencemos na sociedade. Imaginemo-nos cobertos por um “véu de ignorância” que temporariamente nos impeça de saber quem realmente somos. Não sabemos a que classe social ou género pertencemos e desconhecemos a nossa raça ou etnia, as nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. Tampouco conhecemos as nossas vantagens ou desvantagens — se somos saudáveis ou frágeis, se temos alto grau de escolaridade ou se abandonámos a escola, se nascemos numa família estruturada ou numa família desestruturada. Se não possuíssemos essas informações, poderíamos realmente fazer uma escolha a partir de uma posição original de equidade. Já que ninguém estaria numa posição de negociação superior, os princípios escolhidos seriam justos. É assim que Rawls entende um contrato social — um acordo hipotético numa posição original de equidade. Rawls convida-nos a raciocinar sobre os princípios que nós — como pessoas racionais e com interesses próprios — escolheríamos caso estivéssemos nessa posição. Ele não parte do pressuposto de que todos sejamos motivados, na vida real, apenas pelo interesse egoísta; pede apenas que deixemos de lado as nossas convicções morais e religiosas para realizar essa experiência mental. Que princípios escolheríamos?
Primeiramente, raciocina, não optaríamos pelo utilitarismo. Sob o véu de ignorância, cada um de nós ponderaria: “Pensando bem, posso vir a ser membro de uma minoria oprimida.” E ninguém arriscaria ser o cristão que é atirado aos leões para o divertimento da multidão. Nem escolheríamos o simples laissez-faire, o princípio libertário que daria às pessoas o direito de ficar com todo o dinheiro que ganhassem numa economia de mercado. “Posso acabar por ser o Bill Gates”, alguém raciocinaria, “mas também posso, por outro lado, ser um sem-abrigo. Portanto, é melhor evitar um sistema que me deixe desamparado e na penúria. “
Rawls acredita que dois princípios de justiça, poderiam emergir do contrato hipotético. O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se a considerações sobre utilidade social e bem-estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e económica. Embora não requeira uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e económicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade. Os filósofos questionam se os participantes do contrato social hipotético de Rawls escolheriam os princípios que ele afirma que escolheriam. Mais à frente veremos por que Rawls acha que esses dois princípios seriam escolhidos. Mas, antes de abordar os princípios, analisemos uma questão anterior a essa: A experiência hipotética de Rawls é a maneira correta de abordar a questão da justiça? Como podem princípios da justiça resultar de um acordo que jamais aconteceu de fato?
Michael Sandel, Justiça, Lx, Presença, pp.150, 151
domingo, 4 de junho de 2023
Texto para resumo Raquel Costa 10A
Imagem: Quadro de Wieat
Supõe que trabalhas numa biblioteca, verificando os livros
que as pessoas requisitam, e um amigo te pede para o deixares roubar uma obra
de referência difícil de encontrar que quer possuir.Podes hesitar em concordar
por diversas razões. Podes recear que ele seja apanhado e que, assim, tanto ele
como tu arranjem problemas. Ou podes querer que o livro fique na biblioteca
para que tu próprio possas consultá-lo.
Mas também podes pensar que aquilo que ele propõe está
errado – que ele não deve fazê-lo e que tu não deves ajudá-lo. Se pensas assim,
o que quer isso dizer, o que torna isso verdadeiro, se é que há algo que o
torne verdadeiro?
Dizer que isso está errado não é dizer apenas que vai contra
as regras. Pode haver más regras que proíbam aquilo que não está errado — tal
como uma lei contra criticar o governo. Uma regra também pode ser má por exigir
algo que é errado — tal como uma lei que exige a segregação racial em hotéis e
restaurantes. As ideias de certo e errado são diferentes das ideias daquilo que
vai ou não contra as regras. Caso contrário, não podiam ser usadas na avaliação
das regras, bem como na avaliação das ações.Se pensas que seria errado ajudares
o teu amigo a roubar o livro, então sentes-te desconfortável com a ideia de o
fazeres: de algum modo, não queres fazê-lo, mesmo que também estejas relutante
em recusares ajudar um amigo. Donde vem o desejo de não o fazer? Qual é o seu
motivo, a razão por detrás dele?
Há várias maneiras pelas quais algo pode estar errado, mas
neste caso, se tivesses de explicá-lo, provavelmente, dirias que seria injusto para
os restantes utentes da biblioteca, que podem estar tão interessados no livro
como o teu amigo, mas que o consultam na sala das obras de referência, onde
qualquer pessoa que precise dele pode encontrá-lo. Podes também sentir que
deixar o teu amigo levar o livro trairia aqueles que te empregam, que te pagam
precisamente para prevenir que coisas como estas aconteçam.
Estas ideias relacionam-se com os efeitos sobre outras
pessoas — não necessariamente com efeitos sobre os seus sentimentos, uma vez
que podem nunca vir a descobri-lo, mas, ainda assim, com algum tipo de dano. Em
geral, a ideia de que algo é errado depende do seu impacto não só na pessoa que
o pratica, mas também noutras pessoas. Se o descobrissem, não gostariam e
opor-se-iam. Mas supõe que tentas explicar tudo isto ao teu amigo e ele diz:
«Eu sei que o bibliotecário não havia de gostar se viesse a dar pela falta do
livro e que, provavelmente, alguns dos restantes utentes da biblioteca ficariam
aborrecidos se descobrissem que o livro tinha desaparecido, mas que mal faz? Eu
quero o livro; por que razão hei-de preocupar-me com os outros?»
Espera-se que o argumento de que tal seria errado lhe dê uma
razão qualquer para não o fazer. Mas que razão poderá ter alguém que, pura e
simplesmente, não se preocupa com as outras pessoas e que pode escapar
impunemente para se coibir de fazer qualquer coisa que, normalmente, é
considerada errada? Que razão pode ter para não matar, roubar, mentir ou magoar
outras pessoas? Se conseguir aquilo que quer ao fazer essas coisas, por que
razão não há-de fazê-las? E, se não há nenhuma razão para não as fazer, em que
sentido será isso errado'?
É claro que a maioria das pessoas se preocupam em certa medida
umas com as outras. Mas, se alguém não se preocupa, a maior parte de nós não
conclui que a moral não se aplica a essa pessoa. A moral não deixa de se
aplicar automaticamente a uma pessoa que mata alguém apenas para lhe roubar a
carteira, sem se preocupar com a vítima. O facto de ela não se preocupar não
torna a sua atitude correta: devia preocupar-se. Mas por que razão deveria ela
preocupar-se? Tem havido muitas
tentativas para responder a esta questão. Um tipo de resposta consiste em
tentar encontrar algo com que a pessoa já se preocupe para depois identificar a
moral com isso.
Thomas Nagel, Que quer dizer tudo isto? 1987, 1995, Gradiva,
p56,57
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