Chardin, A criança com um teetotum, retrato de Auguste-Gabriel Godefroy (1728-1813) 1741
Como viver?
A habitual
leitura de jornais britânicos online trouxe-me, em tempos, a não-notícia de que
a Universidade de Harvard conduziu um estudo cuja conclusão demonstra de forma
“científica” que o que faz o ser humano feliz é o amor. Devo dizer que bocejei
de imediato assim que acabei de ler o artigo (terá sido no Guardian? no
Telegraph? já não me lembro), porque a conclusão não constitui qualquer
novidade. A pessoa feliz já é descrita, antes da era cristã, no grande texto
espiritual em sânscrito Bhagavad Gita (12.19) como sendo indiferente a elogios
e insultos, capaz de estar em silêncio, capaz de encontrar contentamento em
cada situação e estando sempre “cheia de amor”. A tradição cristã também nos
ensina que a opção de vida que nos é mais benéfica é amarmos o próximo como a
nós mesmos. Portanto a “prova” vinda de Harvard — de que as pessoas mais
felizes são as que amam os seus pais, filhos, cônjuges e namorados(as) — não
corresponde propriamente à descoberta da pólvora.
Deixemos,
por conseguinte, as alegadas descobertas da ciência e, para percebermos qual é
a melhor maneira de vivermos a nossa vida, consultemos antes esse maravilhoso
texto acima referido da tradição hindu. Ora a Bhagavad Gita diz-nos muitas
coisas surpreendentes e desconcertantes, mas nenhuma, no meu entender, é mais
surpreendente do que esta: o essencial, na vida, é arredarmos de todas as
nossas ações o proveito próprio. Nada do que empreendemos, nada do que fazemos
deve ter como objetivo o nosso próprio benefício. Pelo contrário, tudo o que
fazemos deve ser feito tão-somente pelo valor intrínseco da ação em si.
A minha
própria experiência de vida tem-me ensinado de forma muito pragmática que nada
nos dá uma sensação tão agradável como empreendermos uma tarefa cujo benefício
irá reverter a favor de outrem. Por outro lado, constatamos tantas vezes que
ações empreendidas com base numa expectativa de proveito próprio acabam por não
redundar em nosso benefício. Na verdade, todas as ações que empreendemos para
beneficiar os outros, em vez de nos deixarem de mãos vazias, deixam-nos mais
ricos, pois é delas que advém a felicidade mais pura. O tal amor que (segundo o
estudo de Harvard) nos faz mais felizes é justamente aquele que nada pede em
troca.
Como
complemento à fórmula da felicidade proposta pela Bhagavad Gita, poderíamos
ainda compulsar o indispensável Mundo como Vontade e Representação de Arthur
Schopenhauer e determo-nos um pouco no capítulo 38 do Livro III. Segundo
Schopenhauer, aquilo que nos leva a agir em proveito próprio é a vontade. “Todo
o querer”, escreve o grande filósofo, “advém da carência, portanto do
sofrimento”. A sensação de carência — esse abismo hiante dentro de nós mesmos —
leva-nos a procurar realidades e circunstâncias que a mitiguem; mas (como diz
Schopenhauer) cada vez que satisfazemos um desejo que alegadamente nos iria
fazer felizes damo-nos conta de que ficaram no mínimo dez desejos ainda mais
vorazes por satisfazer. As nossas necessidades e desejos canibalizam-nos. O
sentimento da sua satisfação é — ironia das ironias — evanescente e ilusório.
Sob esta perspetiva, agir em proveito próprio nunca nos traz a saciedade, nunca
preenche um único milímetro cúbico que seja do vazio de carência devoradora com
que viemos ao mundo.
Como
antídoto a este ciclo vicioso de auto-canibalização e de pseudo-saciedade,
Schopenhauer propõe a contemplação serena e desinteressada da obra de arte.
Entregarmo-nos a ela, perdermo-nos na beleza do objeto contemplado obriga-nos a
desviar a atenção de nós mesmos. De repente, não somos nós os importantes: é a
pintura que temos diante dos olhos; ou a obra musical que, por meio dos
ouvidos, nos penetra na consciência.
Frederico Lourenço
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