Eutanásia
"Eutanásia" significa, de acordo com o dicionário,
"uma morte serena e pacífica", mas refere-se actualmente à morte
daqueles que têm doenças incuráveis ou que vivem em grande dor e sofrimento, em
benefício daqueles que são mortos e para os poupar a mais dor e sofrimento. É
este o tema principal deste capítulo. No entanto, considerarei também alguns
casos em que, embora a morte não seja contrária aos desejos do ser humano que é
morto, também não é efectuada especificamente em benefício desse ser. Como
veremos, alguns casos que se referem a bebés recém-nascidos incluem-se nesta
categoria. Esses casos podem não ser de "eutanásia" no sentido
estrito do termo, mas torna-se proveitoso inclui-los na mesma discussão geral,
desde que se estabeleçam com clareza as diferenças relevantes que os
distinguem. Na definição habitual de eutanásia cabem três tipos distintos, cada
um dos quais levanta questões éticas específicas. Será útil para a nossa
abordagem se começarmos por esclarecer esta tripla distinção, avaliando depois
a possível justificação de cada tipo.
Tipos de eutanásia
Eutanásia voluntária
A maioria dos grupos que actualmente fazem campanhas para
que a lei seja alterada no sentido de autorizar a eutanásia fazem-no a favor da
eutanásia voluntária, isto é, a eutanásia realizada a pedido da pessoa que
deseja morrer. Por vezes, a eutanásia voluntária é praticamente indistinguível
do suicídio assistido. No livro *_Jean.s Way*, Derek Humphry conta como a sua
mulher, Jean, a morrer de cancro, lhe pediu que lhe facultasse os meios de pôr
fim à vida com rapidez e sem dor. Viran que a situação se aproximava e
discutiram-na com antecedência. Derek conseguiu alguns comprimidos e deu-os a
Jean, que os tomou e morreu pouco depois. O médico Jack Kevorkian, patologista
de Michigan, deu um passo em frente quando construiu uma "máquina de
suicídio" para auxiliar os doentes em estado terminal a cometer suicídio.
A sua máquina consistia numa haste metálica com três frascos diferentes ligados
a um tubo do tipo dos que se usam para efectuar uma ligação intravenosa. O
médico insere o tubo na veia do paciente, mas nesta fase apenas uma solução
salina inofensiva pode passar pelo tubo. O paciente pode então accionar um
interruptor que faz passar pelo tubo um medicamento indutor do coma, que é
automaticamente seguido de uma solução letal contida no terceiro frasco.
Kevorkian anunciou que estava preparado para disponibilizar a máquina a
qualquer doente terminal que desejasse utilizá-la. (O suicídio assistido não é
ilegal no estado de Michigan.) Em Junho de 1990, Janet Adkins, que sofria da
doença de Alzheimer, mas ainda tinha lucidez suficiente para tomar a decisão de
pôr fim à sua vida, contactou Kevorkian e pô-lo a par da sua vontade de morrer,
em vez de sofrer a deterioração lenta e progressiva que a doença acarreta.
Kevorkian esteve a seu lado enquanto Janet Adkins utilizava a sua máquina e
depois relatou o caso à polícia. Na sequência deste episódio foi acusado de
homicídio, mas o juiz não aceitou que a acusação seguisse para julgamento, com
base no facto de ter sido Janet Adkins quem provocou a sua própria morte. No
ano seguinte, Kevorkian disponibilizou a sua máquina a mais duas pessoas, que a
usaram para pôr fim à vida (1).
(2) Kevorkian foi de novo acusado de homicídio e de fornecer
uma substância proibida, em relação aos dois últimos casos, mas mais uma vez a
acusação não foi aceite.
Noutros casos, as pessoas que pretendem pôr fim à vida podem
não ser capazes de se suicidar. Em 1973, George Zygmaniak ficou ferido num
acidente de moto perto da sua casa de Nova Jérsia. Foi levado para o hospital,
onde se verificou que tinha ficado totalmente paralisado do pescoço para baixo.
Sofria também de muitas dores. Disse ao médico e ao irmão, Lester, que não
queria continuar a viver nessas condições. Implorou a ambos que o matassem.
Lester interrogou o médico e o pessoal hospitalar sobre as possibilidades de
recuperação de George;
:, disseram-lhe que eram nulas. Conseguiu então introduzir
uma pistola no hospital e disse ao irmão: "Estou aqui para acabar com o
teu sofrimento, George. É isso que queres?" George, que não podia falar
devido a uma operação para o ajudar a respirar melhor, disse que sim com a
cabeça. Lester disparou um tiro à queima roupa nas têmporas. O caso Zygmaniak
constitui um exemplo claro de eutanásia voluntária, embora sem alguns dos
procedimentos de salvaguarda propostos pelos apoiantes da legalização da
eutanásia voluntária. Por exemplo, as opiniões médicas sobre as perspectivas de
recuperação do paciente foram obtidas somente de um modo informal. Tão-pouco
houve uma tentativa cuidadosa de estabelecer, perante testemunhas
independentes, que o desejo de George de morrer era inflexível e racional,
baseado na melhor informação disponível sobre o seu estado de saúde. A morte
não foi provocada por um médico. Uma injecção teria sido menos perturbadora
para as outras pessoas que um tiro. Mas Lester Zygmaniak não dispunha dessas
opções, porque a lei do estado de Nova Jérsia, como a da maioria dos estados
americanos, considera a morte misericordiosa um homicídio e, se divulgasse os
seus planos, não teria podido levá-los avante. A eutanásia pode ser voluntária
mesmo quando uma pessoa não é capaz de indicar, ao contrário de Jean Humphry,
Janet Adkins e George Zygmaniak, a sua vontade de morrer até ao momento em que
os comprimidos são engolidos, o interruptor accionado ou o gatilho premido. Uma
pessoa pode, estando de boa saúde, fazer um pedido escrito de eutanásia se,
devido a um acidente ou a doença, chegar a uma situação em que é incapaz de
tomar ou de exprimir a decisão de morrer, e sofre de dores ou se encontra
privada das suas faculdades mentais e sem esperança razoável de recuperação. Ao
matar uma pessoa que fez um tal pedido, que o reafirmou de tempos a tempos e
que está agora numa das situações descritas, pode-se verdadeiramente defender
que se age com o seu consentimento. Há agora um país no qual os médicos podem
auxiliar abertamente os seus pacientes a morrer de uma forma pacífica e digna.
Na Holanda, uma série de casos em tribunal no decurso dos anos 80 sancionou o
direito de um médico auxiliar o seu :, doente a morrer, mesmo que essa
assistência implique dar-lhe uma injecção letal. Os médicos na Holanda que
cumpram determinadas directivas (que serão descritas mais à frente neste
capítulo) podem agora praticar a eutanásia abertamente e declará-lo na certidão
de óbito sem receio de perseguição. Calculou-se que cerca de 2300 mortes por
ano resultam de eutanásia efectuada deste modo.
Eutanásia involuntária
Considerarei que a eutanásia é involuntária quando a pessoa
que se mata é capaz de consentir na sua própria morte, mas não o faz, quer
porque não lhe perguntam, quer porque lhe perguntam e prefere continuar a
viver. Admito que esta definição agrupa dois casos diferentes na mesma
categoria. Há uma diferença significativa entre matar alguém que prefere
continuar a viver e matar alguém que não consentiu em ser morto, mas que, se
lhe perguntassem, teria consentido. Na prática, porém, é difícil imaginar casos
em que uma pessoa é capaz de consentir e
teria consentido se lhe tivessem perguntado, mas a quem
ninguém fez a pergunta. Por que razão não iremos perguntar-lhe? Somente nas
situações mais bizarras se poderia conceber uma razão para não obter o
consentimento de uma pessoa que esteja ao mesmo tempo capaz e desejosa de
consentir. Matar alguém que não consentiu em ser morto pode considerar-se
correctamente eutanásia apenas quando o motivo para essa morte é o desejo de
evitar sofrimento insuportável à pessoa que é morta. É evidente que seria
estranho que alguém, agindo por este motivo, não respeitasse a vontade da
pessoa por mor de quem se age assim. Os casos genuínos de eutanásia
involuntária são muito raros.
Eutanásia não voluntária
Estas duas definições deixam lugar a um terceiro tipo de
eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e
a morte, a eutanásia não seria nem voluntária nem involuntária, mas não
voluntária. Aqueles que são: incapazes de dar consentimento incluiriam bebés
com doenças incuráveis ou graves deficiências e pessoas que, devido a
acidentes, doença ou idade avançada, perderam permanentemente a capacidade de
compreender as questões em causa, sem terem previamente pedido nem rejeitado a
eutanásia efectuada nessas circunstâncias. Diversos casos de eutanásia não
voluntária chegaram aos tribunais e à imprensa popular. Eis um exemplo. Louis
Repouille tinha um filho que era descrito como um "imbecil incurável"
tinha estado preso à cama desde tenra infância e era cego há cinco anos (*).
(*) "Imbecil" era o termo então usado para pessoas
com debilidades mentais profundas, com um _Q_I muito baixo (entre 25 e 50).
(*_N. do R. C.*)
Estas questões
levantam dificuldades técnicas para a legislação da eutanásia voluntária, mas
não representam objecções aos seus princípios éticos subjacentes; mas, apesar
de tudo, não deixam de ser dificuldades sérias. As directivas promulgadas pelos
tribunais da Holanda procuraram resolvê-las propondo que a eutanásia só seja
aceitável se:
For efectuada por um médico; O paciente tiver explicitamente
solicitado a eutanásia de uma forma que não deixe qualquer dúvida quanto ao seu
desejo de morrer; A decisão do paciente for bem informada, livre e definitiva;
O paciente tiver um estado de saúde irreversível que cause sofrimento físico ou
mental prolongado que o paciente ache insuportável; Não existir qualquer alternativa razoável
(razoável do ponto de vista do paciente) para aliviar o seu sofrimento; O
médico tiver consultado outro médico independente que esteja de acordo com a
sua opinião.
A eutanásia efectuada nestas condições conta com um forte
apoio da Real Associação Médica Holandesa e do público em geral na Holanda.
Estas directivas tornam o homicídio disfarçado de eutanásia bastante improvável
e não há indícios de um aumento da taxa de homicídios na Holanda. Diz-se com
frequência, em debates sobre a eutanásia, que os médicos podem enganar-se. Em
alguns raros exemplos, pacientes a quem foram diagnosticadas doenças incuráveis
por dois médicos competentes sobreviveram e gozaram anos de boa saúde.
Possivelmente, a legalização da eutanásia significaria, ao longo dos anos, a
morte de algumas pessoas que teriam, se assim não fosse, recuperado da sua
doença imediata e vivido mais alguns anos. Este não é, porém, o argumento
arrasador contra a eutanásia, como algumas pessoas pensam. Ao número muito
pequeno de mortes desnecessárias que podiam ocorrer no caso da legalização da
eutanásia devemos contrapor a grande quantidade de dor e de aflição que
sofrerão os pacientes que se encontram de facto em fase terminal de doenças se
a eutanásia não for legalizada. Uma vida mais longa não é um bem assim tão
supremo que supere todas as restantes considerações. (Se fosse, haveria
numerosos meios mais eficazes de prolongar a vida -- como proibir o tabaco ou
reduzir os limites de velocidade para 40 quilómetros por hora -- do que proibir
a eutanásia voluntária.) A possibilidade de dois médicos diferentes poderem
cometer o mesmo erro significa que a pessoa que opta pela eutanásia decide
sobre o balanço das probabilidades e desiste de uma possibilidade muito pequena
de sobrevivência, de modo a evitar sofrer o que irá quase certamente terminar
na morte. Pode tratar-se de uma escolha perfeitamente racional. A probabilidade
é o guia da vida -- e também da morte. Contra isto, algumas pessoas replicarão
que uma melhoria dos cuidados dispensados aos doentes em fase terminal eliminou
a dor e tornou a eutanásia voluntária desnecessária. Elisabeth Kübler-_Ross,
cujo
livro *_On Death and Dying* é talvez a obra mais conhecida
sobre a assistência a pessoas que estão às portas da morte, afirmou que nenhum
dos seus pacientes pediu a eutanásia. Se receberem atenção pessoal e a
medicação correcta, prossegue, as pessoas acabam por aceitar a morte e morrem
em paz e sem dor. Talvez Kübler-_Ross tenha razão. Talvez seja actualmente
possível eliminar a dor. Em quase todos os casos pode mesmo ser possível
fazê-lo de uma forma tal que deixe os pacientes na posse das suas faculdades
racionais e livres de vómitos, náuseas ou outros efeitos secundários
indesejáveis. Infelizmente, só uma minoria de pacientes em estado terminal
recebe hoje esse tipo de cuidados. Porém, a dor física não é o único problema.
Pode haver também outras circunstâncias angustiantes, como ossos tão frágeis
que se fracturam com movimentos súbitos, náuseas e vómitos incontroláveis,
inanição lenta devida ao avanço de um cancro, incontinência fecal e urinária,
dificuldades respiratórias, etc. O doutor Timothy Quill, médico de Rochester,
Nova Iorque, descreveu como receitou comprimidos para dormir a
"Diane", uma paciente que sofria de uma forma grave de leucemia,
sabendo que ela queria os comprimidos para pôr fim à vida. O doutor Ouill
conhecia Diane há muitos anos e admirava a sua coragem em lidar com doenças
graves anteriores. Num artigo publicado na revista *_New England Journal of
Medicine*, escreve:
Era extraordinariamente importante para Diane manter o
domínio de si própria e a dignidade durante o tempo de vida que lhe restava.
Quando isso deixou de ser possível, desejava claramente morrer. Como antigo
director de um programa de cuidados especiais para doentes em estado terminal,
eu sabia como usar analgésicos para manter os pacientes tranquilos e
aliviar-lhes o sofrimento. Expliquei-lhe a filosofia dos cuidados de conforto
em que acredito com grande convicção. Embora Diane compreendesse e agradecesse,
conhecera pessoas que se arrastavam naquilo que ela considerava um bem-estar
relativo e ela não queria nada disso. Quando o momento chegou, quis pôr fim à
vida da forma menos dolorosa possível. Conhecendo o seu desejo de independência
e a sua decisão de se manter lúcida, pensei que este pedido fazia todo o
sentido [...] Pela nossa conversa tornou-se claro que a presença do seu medo de
uma agonia prolongada iria interferir com a vontade de Diane de tirar o máximo
partido do tempo que lhe restava enquanto não encontrasse uma forma segura de
garantir a sua morte.
Nem todos os pacientes que desejam morrer têm a sorte de
encontrar um médico como Timothy Quill. Betty Rollin descreveu no seu comovente
livro *_Last Wish* a forma como a sua mãe :, foi atingida por um cancro nos
ovários que alastrou a outras partes do corpo. Certa manhã a mãe disse-lhe:
Tive uma vida maravilhosa, mas agora chegou ao fim, ou devia
chegar. Não tenho medo de morrer, mas tenho medo desta doença, do que me está a
fazer [...] Nunca mais vou ter alívio. Só náuseas e dores [...] Já não haverá
mais quimioterapia. Já não há qualquer tratamento. O que é que me vai
acontecer? Eu sei. Vou morrer a pouco e pouco [...] Não quero isso [...] Quem
ficaria a ganhar se eu fosse definhando de dia para dia? Se fosse para bem dos
meus filhos, não hesitaria um momento. Mas não vai ser bom para ti [...] Não
faz qualquer sentido
esta lenta agonia. Nunca gostei de fazer coisas sem sentido.
Tenho de acabar com isto.
Betty Rollin teve muita dificuldade em ajudar a mãe a levar
avante o seu desejo: "Médico após médico recusava os nossos pedidos de
ajuda (Quantos comprimidos? Quais?)". Após a publicação do livro sobre a
morte da sua mãe recebeu centenas de cartas, muitas das quais de pessoas ou de
familiares dessas pessoas que tentaram morrer e falharam, ficando a sofrer
ainda mais. Os médicos recusaram ajudar muitas dessas pessoas porque, embora o
suicídio seja legal em muitas jurisdições, o suicídio assistido não o é. Talvez
um dia seja possível tratar todos os doentes terminais e pacientes incuráveis
de uma forma tal que ninguém requeira a eutanásia e a questão deixe de se pôr;
mas de momento não passa de um ideal utópico e não constitui, de forma alguma,
um motivo para recusar a eutanásia a todos aqueles que têm de viver e de morrer
em condições muito menos confortáveis. Em todo o caso, é altamente paternalista
dizer a pacientes às portas da morte que são agora tão bem tratados que não
precisam da opção da eutanásia. Seria mais consentâneo com o respeito pela
liberdade e pela autonomia individuais legalizar a eutanásia e deixar os
pacientes decidir se a sua situação é insuportável ou não. Será que estes
argumentos em favor da eutanásia dão demasiado peso à liberdade e à autonomia
individuais? Afinal de contas, não permitimos que as pessoas façam escolhas
livres em questões como, por exemplo, tomar heroína. Trata-se de uma restrição
da :, liberdade, mas, na opinião de muitas pessoas, uma das restrições que se
podem justificar com bases paternalistas. Se evitar que as pessoas se tornem
heroinómanas constitui um paternalismo justificável, por que razão não o será
evitar que as pessoas se suicidem? A questão é razoável porque o respeito pela
liberdade individual pode ir longe de mais. John Stuart Mill pensava que o
estado nunca devia interferir com o indivíduo, excepto para impedir danos a
terceiros. O bem individual, pensava Mill, não representa uma razão adequada à
intervenção do Estado. Mas Mill pode ter tido uma opinião demasiado elevada da
racionalidade do ser humano. Pode ser ocasionalmente um bem evitar que as
pessoas façam escolhas que obviamente não se baseiam na racionalidade e que
podemos ter a certeza de que mais tarde se irão lamentar. No entanto, a
proibição da eutanásia voluntária não se pode justificar com bases
paternalistas, pois a eutanásia voluntária é um acto para o qual há boas
razões. A eutanásia voluntária só ocorre quando, tanto quanto a medicina sabe,
uma pessoa sofre de uma doença incurável e dolorosa ou extremamente penosa.
Nessas circunstâncias não se pode dizer que optar por uma morte rápida seja
obviamente irracional. A força da argumentação em favor da eutanásia voluntária
reside na sua combinação de respeito pelas preferências ou autonomia daqueles
que se decidem pela eutanásia e na base racional inequívoca da própria decisão.
A não justificação da eutanásia involuntária
A eutanásia involuntária assemelha-se à voluntária por
envolver a morte de quem tem capacidade para consentir a sua própria morte.
Difere no facto de as pessoas
em causa não consentirem. Esta diferença é crucial, como o
argumento da secção anterior põe em evidência. As quatro razões contra a morte
provocada de seres autoconscientes aplicam-se quando a pessoa em causa não
escolhe morrer. Será alguma vez possível justificar a eutanásia involuntária
numa base paternalista, para poupar alguém à extrema agonia? Poderíamos talvez
imaginar um caso em que a agonia fosse tão grande e com um tal grau de certeza
que o peso das considerações :, utilitaristas em favor da eutanásia superasse
as quatro razões contra a morte provocada de seres autoconsciente Contudo, para
tornar esta decisão, alguém teria de ter a certeza de ser capaz de ajuizar,
melhor do que uma pessoa pode fazê-lo por si quando a sua vida se torna tão má
que não vale a pena vivê-la. Não parece que tenhamos alguma vez justificação
para ter tanta confiança nos nossos juízos sobre se a vida de outra pessoa,
para essa pessoa, vale ou não a pena ser vivida. O facto de outra pessoa
desejar continuar a viver constitui uma boa prova de que a sua vida vale a pena
ser vivida. Que melhor prova poderíamos ter? O único tipo de caso em que o
argumento paternalista é de alguma forma plausível é aquele em que a pessoa a
ser morta não se apercebe da agonia que irá sofrer no futuro e, se não lhe
provocarmos a morte naquele momento, terá de suportar tudo até ao fim. Nesta
base, poder-se-ia provocar a morte a uma pessoa que caiu nas mãos de sádicos
homicidas (embora ela ainda não o saiba) que a irão torturar até à morte.
Felizmente estes exemplos são muito mais correntes na ficção do que na
realidade. Se na vida real é improvável que encontremos alguma vez um único
caso de eutanásia involuntária justificável, talvez seja melhor afastar do
nosso espírito os casos fantasiosos em que podemos imaginar que a defendemos e
tratar a regra contra a eutanásia involuntária, para todos os efeitos práticos,
como absoluta. Neste caso é de novo relevante a distinção de Hare entre os
níveis crítico e intuitivo de raciocínio moral (veja-se o capítulo 4). O
exemplo descrito no parágrafo anterior é um daqueles em que, se raciocinarmos
ao nível crítico, podemos ser levados a considerar justificável a eutanásia
involuntária; mas ao nível intuitivo, o nível do raciocínio moral que aplicamos
na vida quotidiana, podemos dizer simplesmente que a eutanásia só se justifica
se as pessoas a quem é aplicada ou
1. Não possuem a aptidão de consentir a morte por não
possuírem a capacidade de compreender a escolha entre a continuidade da sua
existência e a não existência; ou 2. Têm a capacidade de escolher entre a
continuidade da sua própria vida e a morte e tomam uma decisão informada,
voluntária e resoluta de morrer.
Eutanásia activa e passiva
As conclusões a que chegámos neste capítulo chocarão um
grande número de leitores, porque violam um dos princípios mais fundamentais da
ética ocidental -- a proibição de matar seres humanos inocentes. Já fiz uma
tentativa para mostrar que as minhas conclusões representam, pelo menos no caso
dos recém-nascidos
deficientes, um afastamento da prática existente menos
radical do que se poderia supor. Assinalei que muitas sociedades permitem que
uma mulher grávida mate um feto num estado de gravidez avançada se houver um
risco significativo de o feto ser deficiente; e, como a linha que separa um
feto desenvolvido de um bebé recém-nascido não é uma divisória moral crucial,
torna-se difícil ver por que motivo é pior matar um recém-nascido que se sabe
que é deficiente. Nesta secção irei defender a existência de uma outra área da
prática médica aceite que não é intrinsecamente diferente das práticas que os
argumentos deste capítulo permitirão. Já referi um defeito de nascença chamado
"espinha bífida", na qual o bebé nasce com uma abertura na coluna,
expondo a espinal medula. Até 1957, a maioria destas crianças morria cedo, mas
nesse ano os médicos começaram a utilizar um novo tipo de válvula para drenar o
excesso de fluido que se acumulava na cabeça nestes casos. Em alguns hospitais
tornou-se prática corrente fazerem-se todos os esforços para salvar os bebés
com espinha bífida. Em resultado disso, passaram a morrer poucos recém-nascidos
com essa doença -- mas, dos que sobreviviam, a maioria ficava gravemente
deficiente, com paralisias, múltiplas deformações das pernas e da coluna e
incontinência urinária e fecal. As deficiências mentais também eram comuns. Em
suma, a existência dessas crianças causava grandes dificuldades às suas
famílias e era muitas vezes um horror para as próprias crianças. Depois de
estudar os resultados desta política de tratamento activo, um médico britânico,
John Lorber, propôs que, em vez de se tratarem todos os casos de espinha
bífida, apenas se deviam tratar aqueles que apresentassem formas atenuadas da
doença. (Propôs que a decisão final coubesse aos pais, mas os pais :,
normalmente aceitam as recomendações dos médicos.) O princípio do tratamento
selectivo é agora amplamente aceite em muitos países e na Grã_Bretanha foi
reconhecido como legítimo pelo Ministério da Saúde e Segurança Social. Em
resultado disso, sobrevive um menor número de crianças com espinha bífida para
além da primeira infância, mas aquelas que sobrevivem são as que, em grande
medida, possuem deficiências físicas e mentais de menor gravidade relativa. A
política de selecção é, portanto, desejável. Então o que acontece com as
crianças que não são seleccionadas para tratamento? Lorber não disfarça o facto
de, nesses casos, haver a esperança de que a criança morra depressa e sem sofrimento.
É para atingir este objectivo que não se efectuam operações cirúrgicas nem
outras formas de tratamento, embora a dor e o sofrimento sejam aliviados na
medida do possível. Se a criança apanha uma infecção, o tipo de infecção que
numa criança normal seria rapidamente combatida com antibióticos, estes não lhe
são administrados. Como a sobrevivência da criança não é desejada, não se tomam
medidas para evitar uma complicação fatal, facilmente curável por técnicas
clínicas correntes.
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