sexta-feira, 1 de junho de 2018

TEMAS DE ENSAIO - EUTANÁSIA




Eutanásia

"Eutanásia" significa, de acordo com o dicionário, "uma morte serena e pacífica", mas refere-se actualmente à morte daqueles que têm doenças incuráveis ou que vivem em grande dor e sofrimento, em benefício daqueles que são mortos e para os poupar a mais dor e sofrimento. É este o tema principal deste capítulo. No entanto, considerarei também alguns casos em que, embora a morte não seja contrária aos desejos do ser humano que é morto, também não é efectuada especificamente em benefício desse ser. Como veremos, alguns casos que se referem a bebés recém-nascidos incluem-se nesta categoria. Esses casos podem não ser de "eutanásia" no sentido estrito do termo, mas torna-se proveitoso inclui-los na mesma discussão geral, desde que se estabeleçam com clareza as diferenças relevantes que os distinguem. Na definição habitual de eutanásia cabem três tipos distintos, cada um dos quais levanta questões éticas específicas. Será útil para a nossa abordagem se começarmos por esclarecer esta tripla distinção, avaliando depois a possível justificação de cada tipo.





Tipos de eutanásia



Eutanásia voluntária



A maioria dos grupos que actualmente fazem campanhas para que a lei seja alterada no sentido de autorizar a eutanásia fazem-no a favor da eutanásia voluntária, isto é, a eutanásia realizada a pedido da pessoa que deseja morrer. Por vezes, a eutanásia voluntária é praticamente indistinguível do suicídio assistido. No livro *_Jean.s Way*, Derek Humphry conta como a sua mulher, Jean, a morrer de cancro, lhe pediu que lhe facultasse os meios de pôr fim à vida com rapidez e sem dor. Viran que a situação se aproximava e discutiram-na com antecedência. Derek conseguiu alguns comprimidos e deu-os a Jean, que os tomou e morreu pouco depois. O médico Jack Kevorkian, patologista de Michigan, deu um passo em frente quando construiu uma "máquina de suicídio" para auxiliar os doentes em estado terminal a cometer suicídio. A sua máquina consistia numa haste metálica com três frascos diferentes ligados a um tubo do tipo dos que se usam para efectuar uma ligação intravenosa. O médico insere o tubo na veia do paciente, mas nesta fase apenas uma solução salina inofensiva pode passar pelo tubo. O paciente pode então accionar um interruptor que faz passar pelo tubo um medicamento indutor do coma, que é automaticamente seguido de uma solução letal contida no terceiro frasco. Kevorkian anunciou que estava preparado para disponibilizar a máquina a qualquer doente terminal que desejasse utilizá-la. (O suicídio assistido não é ilegal no estado de Michigan.) Em Junho de 1990, Janet Adkins, que sofria da doença de Alzheimer, mas ainda tinha lucidez suficiente para tomar a decisão de pôr fim à sua vida, contactou Kevorkian e pô-lo a par da sua vontade de morrer, em vez de sofrer a deterioração lenta e progressiva que a doença acarreta. Kevorkian esteve a seu lado enquanto Janet Adkins utilizava a sua máquina e depois relatou o caso à polícia. Na sequência deste episódio foi acusado de homicídio, mas o juiz não aceitou que a acusação seguisse para julgamento, com base no facto de ter sido Janet Adkins quem provocou a sua própria morte. No ano seguinte, Kevorkian disponibilizou a sua máquina a mais duas pessoas, que a usaram para pôr fim à vida (1).



(2) Kevorkian foi de novo acusado de homicídio e de fornecer uma substância proibida, em relação aos dois últimos casos, mas mais uma vez a acusação não foi aceite.



Noutros casos, as pessoas que pretendem pôr fim à vida podem não ser capazes de se suicidar. Em 1973, George Zygmaniak ficou ferido num acidente de moto perto da sua casa de Nova Jérsia. Foi levado para o hospital, onde se verificou que tinha ficado totalmente paralisado do pescoço para baixo. Sofria também de muitas dores. Disse ao médico e ao irmão, Lester, que não queria continuar a viver nessas condições. Implorou a ambos que o matassem. Lester interrogou o médico e o pessoal hospitalar sobre as possibilidades de recuperação de George;

:, disseram-lhe que eram nulas. Conseguiu então introduzir uma pistola no hospital e disse ao irmão: "Estou aqui para acabar com o teu sofrimento, George. É isso que queres?" George, que não podia falar devido a uma operação para o ajudar a respirar melhor, disse que sim com a cabeça. Lester disparou um tiro à queima roupa nas têmporas. O caso Zygmaniak constitui um exemplo claro de eutanásia voluntária, embora sem alguns dos procedimentos de salvaguarda propostos pelos apoiantes da legalização da eutanásia voluntária. Por exemplo, as opiniões médicas sobre as perspectivas de recuperação do paciente foram obtidas somente de um modo informal. Tão-pouco houve uma tentativa cuidadosa de estabelecer, perante testemunhas independentes, que o desejo de George de morrer era inflexível e racional, baseado na melhor informação disponível sobre o seu estado de saúde. A morte não foi provocada por um médico. Uma injecção teria sido menos perturbadora para as outras pessoas que um tiro. Mas Lester Zygmaniak não dispunha dessas opções, porque a lei do estado de Nova Jérsia, como a da maioria dos estados americanos, considera a morte misericordiosa um homicídio e, se divulgasse os seus planos, não teria podido levá-los avante. A eutanásia pode ser voluntária mesmo quando uma pessoa não é capaz de indicar, ao contrário de Jean Humphry, Janet Adkins e George Zygmaniak, a sua vontade de morrer até ao momento em que os comprimidos são engolidos, o interruptor accionado ou o gatilho premido. Uma pessoa pode, estando de boa saúde, fazer um pedido escrito de eutanásia se, devido a um acidente ou a doença, chegar a uma situação em que é incapaz de tomar ou de exprimir a decisão de morrer, e sofre de dores ou se encontra privada das suas faculdades mentais e sem esperança razoável de recuperação. Ao matar uma pessoa que fez um tal pedido, que o reafirmou de tempos a tempos e que está agora numa das situações descritas, pode-se verdadeiramente defender que se age com o seu consentimento. Há agora um país no qual os médicos podem auxiliar abertamente os seus pacientes a morrer de uma forma pacífica e digna. Na Holanda, uma série de casos em tribunal no decurso dos anos 80 sancionou o direito de um médico auxiliar o seu :, doente a morrer, mesmo que essa assistência implique dar-lhe uma injecção letal. Os médicos na Holanda que cumpram determinadas directivas (que serão descritas mais à frente neste capítulo) podem agora praticar a eutanásia abertamente e declará-lo na certidão de óbito sem receio de perseguição. Calculou-se que cerca de 2300 mortes por ano resultam de eutanásia efectuada deste modo.



Eutanásia involuntária



Considerarei que a eutanásia é involuntária quando a pessoa que se mata é capaz de consentir na sua própria morte, mas não o faz, quer porque não lhe perguntam, quer porque lhe perguntam e prefere continuar a viver. Admito que esta definição agrupa dois casos diferentes na mesma categoria. Há uma diferença significativa entre matar alguém que prefere continuar a viver e matar alguém que não consentiu em ser morto, mas que, se lhe perguntassem, teria consentido. Na prática, porém, é difícil imaginar casos em que uma pessoa é capaz de consentir e

teria consentido se lhe tivessem perguntado, mas a quem ninguém fez a pergunta. Por que razão não iremos perguntar-lhe? Somente nas situações mais bizarras se poderia conceber uma razão para não obter o consentimento de uma pessoa que esteja ao mesmo tempo capaz e desejosa de consentir. Matar alguém que não consentiu em ser morto pode considerar-se correctamente eutanásia apenas quando o motivo para essa morte é o desejo de evitar sofrimento insuportável à pessoa que é morta. É evidente que seria estranho que alguém, agindo por este motivo, não respeitasse a vontade da pessoa por mor de quem se age assim. Os casos genuínos de eutanásia involuntária são muito raros.





Eutanásia não voluntária



Estas duas definições deixam lugar a um terceiro tipo de eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte, a eutanásia não seria nem voluntária nem involuntária, mas não voluntária. Aqueles que são: incapazes de dar consentimento incluiriam bebés com doenças incuráveis ou graves deficiências e pessoas que, devido a acidentes, doença ou idade avançada, perderam permanentemente a capacidade de compreender as questões em causa, sem terem previamente pedido nem rejeitado a eutanásia efectuada nessas circunstâncias. Diversos casos de eutanásia não voluntária chegaram aos tribunais e à imprensa popular. Eis um exemplo. Louis Repouille tinha um filho que era descrito como um "imbecil incurável" tinha estado preso à cama desde tenra infância e era cego há cinco anos (*).



(*) "Imbecil" era o termo então usado para pessoas com debilidades mentais profundas, com um _Q_I muito baixo (entre 25 e 50). (*_N. do R. C.*)

 Estas questões levantam dificuldades técnicas para a legislação da eutanásia voluntária, mas não representam objecções aos seus princípios éticos subjacentes; mas, apesar de tudo, não deixam de ser dificuldades sérias. As directivas promulgadas pelos tribunais da Holanda procuraram resolvê-las propondo que a eutanásia só seja aceitável se:



For efectuada por um médico; O paciente tiver explicitamente solicitado a eutanásia de uma forma que não deixe qualquer dúvida quanto ao seu desejo de morrer; A decisão do paciente for bem informada, livre e definitiva; O paciente tiver um estado de saúde irreversível que cause sofrimento físico ou mental prolongado que o paciente ache insuportável;  Não existir qualquer alternativa razoável (razoável do ponto de vista do paciente) para aliviar o seu sofrimento; O médico tiver consultado outro médico independente que esteja de acordo com a sua opinião.



A eutanásia efectuada nestas condições conta com um forte apoio da Real Associação Médica Holandesa e do público em geral na Holanda. Estas directivas tornam o homicídio disfarçado de eutanásia bastante improvável e não há indícios de um aumento da taxa de homicídios na Holanda. Diz-se com frequência, em debates sobre a eutanásia, que os médicos podem enganar-se. Em alguns raros exemplos, pacientes a quem foram diagnosticadas doenças incuráveis por dois médicos competentes sobreviveram e gozaram anos de boa saúde. Possivelmente, a legalização da eutanásia significaria, ao longo dos anos, a morte de algumas pessoas que teriam, se assim não fosse, recuperado da sua doença imediata e vivido mais alguns anos. Este não é, porém, o argumento arrasador contra a eutanásia, como algumas pessoas pensam. Ao número muito pequeno de mortes desnecessárias que podiam ocorrer no caso da legalização da eutanásia devemos contrapor a grande quantidade de dor e de aflição que sofrerão os pacientes que se encontram de facto em fase terminal de doenças se a eutanásia não for legalizada. Uma vida mais longa não é um bem assim tão supremo que supere todas as restantes considerações. (Se fosse, haveria numerosos meios mais eficazes de prolongar a vida -- como proibir o tabaco ou reduzir os limites de velocidade para 40 quilómetros por hora -- do que proibir a eutanásia voluntária.) A possibilidade de dois médicos diferentes poderem cometer o mesmo erro significa que a pessoa que opta pela eutanásia decide sobre o balanço das probabilidades e desiste de uma possibilidade muito pequena de sobrevivência, de modo a evitar sofrer o que irá quase certamente terminar na morte. Pode tratar-se de uma escolha perfeitamente racional. A probabilidade é o guia da vida -- e também da morte. Contra isto, algumas pessoas replicarão que uma melhoria dos cuidados dispensados aos doentes em fase terminal eliminou a dor e tornou a eutanásia voluntária desnecessária. Elisabeth Kübler-_Ross, cujo

livro *_On Death and Dying* é talvez a obra mais conhecida sobre a assistência a pessoas que estão às portas da morte, afirmou que nenhum dos seus pacientes pediu a eutanásia. Se receberem atenção pessoal e a medicação correcta, prossegue, as pessoas acabam por aceitar a morte e morrem em paz e sem dor. Talvez Kübler-_Ross tenha razão. Talvez seja actualmente possível eliminar a dor. Em quase todos os casos pode mesmo ser possível fazê-lo de uma forma tal que deixe os pacientes na posse das suas faculdades racionais e livres de vómitos, náuseas ou outros efeitos secundários indesejáveis. Infelizmente, só uma minoria de pacientes em estado terminal recebe hoje esse tipo de cuidados. Porém, a dor física não é o único problema. Pode haver também outras circunstâncias angustiantes, como ossos tão frágeis que se fracturam com movimentos súbitos, náuseas e vómitos incontroláveis, inanição lenta devida ao avanço de um cancro, incontinência fecal e urinária, dificuldades respiratórias, etc. O doutor Timothy Quill, médico de Rochester, Nova Iorque, descreveu como receitou comprimidos para dormir a "Diane", uma paciente que sofria de uma forma grave de leucemia, sabendo que ela queria os comprimidos para pôr fim à vida. O doutor Ouill conhecia Diane há muitos anos e admirava a sua coragem em lidar com doenças graves anteriores. Num artigo publicado na revista *_New England Journal of Medicine*, escreve:



Era extraordinariamente importante para Diane manter o domínio de si própria e a dignidade durante o tempo de vida que lhe restava. Quando isso deixou de ser possível, desejava claramente morrer. Como antigo director de um programa de cuidados especiais para doentes em estado terminal, eu sabia como usar analgésicos para manter os pacientes tranquilos e aliviar-lhes o sofrimento. Expliquei-lhe a filosofia dos cuidados de conforto em que acredito com grande convicção. Embora Diane compreendesse e agradecesse, conhecera pessoas que se arrastavam naquilo que ela considerava um bem-estar relativo e ela não queria nada disso. Quando o momento chegou, quis pôr fim à vida da forma menos dolorosa possível. Conhecendo o seu desejo de independência e a sua decisão de se manter lúcida, pensei que este pedido fazia todo o sentido [...] Pela nossa conversa tornou-se claro que a presença do seu medo de uma agonia prolongada iria interferir com a vontade de Diane de tirar o máximo partido do tempo que lhe restava enquanto não encontrasse uma forma segura de garantir a sua morte.



Nem todos os pacientes que desejam morrer têm a sorte de encontrar um médico como Timothy Quill. Betty Rollin descreveu no seu comovente livro *_Last Wish* a forma como a sua mãe :, foi atingida por um cancro nos ovários que alastrou a outras partes do corpo. Certa manhã a mãe disse-lhe:



Tive uma vida maravilhosa, mas agora chegou ao fim, ou devia chegar. Não tenho medo de morrer, mas tenho medo desta doença, do que me está a fazer [...] Nunca mais vou ter alívio. Só náuseas e dores [...] Já não haverá mais quimioterapia. Já não há qualquer tratamento. O que é que me vai acontecer? Eu sei. Vou morrer a pouco e pouco [...] Não quero isso [...] Quem ficaria a ganhar se eu fosse definhando de dia para dia? Se fosse para bem dos meus filhos, não hesitaria um momento. Mas não vai ser bom para ti [...] Não faz qualquer sentido

esta lenta agonia. Nunca gostei de fazer coisas sem sentido. Tenho de acabar com isto.



Betty Rollin teve muita dificuldade em ajudar a mãe a levar avante o seu desejo: "Médico após médico recusava os nossos pedidos de ajuda (Quantos comprimidos? Quais?)". Após a publicação do livro sobre a morte da sua mãe recebeu centenas de cartas, muitas das quais de pessoas ou de familiares dessas pessoas que tentaram morrer e falharam, ficando a sofrer ainda mais. Os médicos recusaram ajudar muitas dessas pessoas porque, embora o suicídio seja legal em muitas jurisdições, o suicídio assistido não o é. Talvez um dia seja possível tratar todos os doentes terminais e pacientes incuráveis de uma forma tal que ninguém requeira a eutanásia e a questão deixe de se pôr; mas de momento não passa de um ideal utópico e não constitui, de forma alguma, um motivo para recusar a eutanásia a todos aqueles que têm de viver e de morrer em condições muito menos confortáveis. Em todo o caso, é altamente paternalista dizer a pacientes às portas da morte que são agora tão bem tratados que não precisam da opção da eutanásia. Seria mais consentâneo com o respeito pela liberdade e pela autonomia individuais legalizar a eutanásia e deixar os pacientes decidir se a sua situação é insuportável ou não. Será que estes argumentos em favor da eutanásia dão demasiado peso à liberdade e à autonomia individuais? Afinal de contas, não permitimos que as pessoas façam escolhas livres em questões como, por exemplo, tomar heroína. Trata-se de uma restrição da :, liberdade, mas, na opinião de muitas pessoas, uma das restrições que se podem justificar com bases paternalistas. Se evitar que as pessoas se tornem heroinómanas constitui um paternalismo justificável, por que razão não o será evitar que as pessoas se suicidem? A questão é razoável porque o respeito pela liberdade individual pode ir longe de mais. John Stuart Mill pensava que o estado nunca devia interferir com o indivíduo, excepto para impedir danos a terceiros. O bem individual, pensava Mill, não representa uma razão adequada à intervenção do Estado. Mas Mill pode ter tido uma opinião demasiado elevada da racionalidade do ser humano. Pode ser ocasionalmente um bem evitar que as pessoas façam escolhas que obviamente não se baseiam na racionalidade e que podemos ter a certeza de que mais tarde se irão lamentar. No entanto, a proibição da eutanásia voluntária não se pode justificar com bases paternalistas, pois a eutanásia voluntária é um acto para o qual há boas razões. A eutanásia voluntária só ocorre quando, tanto quanto a medicina sabe, uma pessoa sofre de uma doença incurável e dolorosa ou extremamente penosa. Nessas circunstâncias não se pode dizer que optar por uma morte rápida seja obviamente irracional. A força da argumentação em favor da eutanásia voluntária reside na sua combinação de respeito pelas preferências ou autonomia daqueles que se decidem pela eutanásia e na base racional inequívoca da própria decisão.



A não justificação da eutanásia involuntária



A eutanásia involuntária assemelha-se à voluntária por envolver a morte de quem tem capacidade para consentir a sua própria morte. Difere no facto de as pessoas

em causa não consentirem. Esta diferença é crucial, como o argumento da secção anterior põe em evidência. As quatro razões contra a morte provocada de seres autoconscientes aplicam-se quando a pessoa em causa não escolhe morrer. Será alguma vez possível justificar a eutanásia involuntária numa base paternalista, para poupar alguém à extrema agonia? Poderíamos talvez imaginar um caso em que a agonia fosse tão grande e com um tal grau de certeza que o peso das considerações :, utilitaristas em favor da eutanásia superasse as quatro razões contra a morte provocada de seres autoconsciente Contudo, para tornar esta decisão, alguém teria de ter a certeza de ser capaz de ajuizar, melhor do que uma pessoa pode fazê-lo por si quando a sua vida se torna tão má que não vale a pena vivê-la. Não parece que tenhamos alguma vez justificação para ter tanta confiança nos nossos juízos sobre se a vida de outra pessoa, para essa pessoa, vale ou não a pena ser vivida. O facto de outra pessoa desejar continuar a viver constitui uma boa prova de que a sua vida vale a pena ser vivida. Que melhor prova poderíamos ter? O único tipo de caso em que o argumento paternalista é de alguma forma plausível é aquele em que a pessoa a ser morta não se apercebe da agonia que irá sofrer no futuro e, se não lhe provocarmos a morte naquele momento, terá de suportar tudo até ao fim. Nesta base, poder-se-ia provocar a morte a uma pessoa que caiu nas mãos de sádicos homicidas (embora ela ainda não o saiba) que a irão torturar até à morte. Felizmente estes exemplos são muito mais correntes na ficção do que na realidade. Se na vida real é improvável que encontremos alguma vez um único caso de eutanásia involuntária justificável, talvez seja melhor afastar do nosso espírito os casos fantasiosos em que podemos imaginar que a defendemos e tratar a regra contra a eutanásia involuntária, para todos os efeitos práticos, como absoluta. Neste caso é de novo relevante a distinção de Hare entre os níveis crítico e intuitivo de raciocínio moral (veja-se o capítulo 4). O exemplo descrito no parágrafo anterior é um daqueles em que, se raciocinarmos ao nível crítico, podemos ser levados a considerar justificável a eutanásia involuntária; mas ao nível intuitivo, o nível do raciocínio moral que aplicamos na vida quotidiana, podemos dizer simplesmente que a eutanásia só se justifica se as pessoas a quem é aplicada ou



1. Não possuem a aptidão de consentir a morte por não possuírem a capacidade de compreender a escolha entre a continuidade da sua existência e a não existência; ou 2. Têm a capacidade de escolher entre a continuidade da sua própria vida e a morte e tomam uma decisão informada, voluntária e resoluta de morrer.





Eutanásia activa e passiva



As conclusões a que chegámos neste capítulo chocarão um grande número de leitores, porque violam um dos princípios mais fundamentais da ética ocidental -- a proibição de matar seres humanos inocentes. Já fiz uma tentativa para mostrar que as minhas conclusões representam, pelo menos no caso dos recém-nascidos

deficientes, um afastamento da prática existente menos radical do que se poderia supor. Assinalei que muitas sociedades permitem que uma mulher grávida mate um feto num estado de gravidez avançada se houver um risco significativo de o feto ser deficiente; e, como a linha que separa um feto desenvolvido de um bebé recém-nascido não é uma divisória moral crucial, torna-se difícil ver por que motivo é pior matar um recém-nascido que se sabe que é deficiente. Nesta secção irei defender a existência de uma outra área da prática médica aceite que não é intrinsecamente diferente das práticas que os argumentos deste capítulo permitirão. Já referi um defeito de nascença chamado "espinha bífida", na qual o bebé nasce com uma abertura na coluna, expondo a espinal medula. Até 1957, a maioria destas crianças morria cedo, mas nesse ano os médicos começaram a utilizar um novo tipo de válvula para drenar o excesso de fluido que se acumulava na cabeça nestes casos. Em alguns hospitais tornou-se prática corrente fazerem-se todos os esforços para salvar os bebés com espinha bífida. Em resultado disso, passaram a morrer poucos recém-nascidos com essa doença -- mas, dos que sobreviviam, a maioria ficava gravemente deficiente, com paralisias, múltiplas deformações das pernas e da coluna e incontinência urinária e fecal. As deficiências mentais também eram comuns. Em suma, a existência dessas crianças causava grandes dificuldades às suas famílias e era muitas vezes um horror para as próprias crianças. Depois de estudar os resultados desta política de tratamento activo, um médico britânico, John Lorber, propôs que, em vez de se tratarem todos os casos de espinha bífida, apenas se deviam tratar aqueles que apresentassem formas atenuadas da doença. (Propôs que a decisão final coubesse aos pais, mas os pais :, normalmente aceitam as recomendações dos médicos.) O princípio do tratamento selectivo é agora amplamente aceite em muitos países e na Grã_Bretanha foi reconhecido como legítimo pelo Ministério da Saúde e Segurança Social. Em resultado disso, sobrevive um menor número de crianças com espinha bífida para além da primeira infância, mas aquelas que sobrevivem são as que, em grande medida, possuem deficiências físicas e mentais de menor gravidade relativa. A política de selecção é, portanto, desejável. Então o que acontece com as crianças que não são seleccionadas para tratamento? Lorber não disfarça o facto de, nesses casos, haver a esperança de que a criança morra depressa e sem sofrimento. É para atingir este objectivo que não se efectuam operações cirúrgicas nem outras formas de tratamento, embora a dor e o sofrimento sejam aliviados na medida do possível. Se a criança apanha uma infecção, o tipo de infecção que numa criança normal seria rapidamente combatida com antibióticos, estes não lhe são administrados. Como a sobrevivência da criança não é desejada, não se tomam medidas para evitar uma complicação fatal, facilmente curável por técnicas clínicas correntes.


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