A CARTOLA
GAARDER, Jostein – in
O Mundo de Sofia, pp. 16-20
…para nos tornarmos bons filósofos precisamos unicamente da capacidade
de nos surpreendermos...
Sofia calculou que o autor das cartas anónimas daria de novo notícias.
Decidiu não contar nada a ninguém acerca das cartas.
Na escola,
tornava-se-lhe difícil concentrar-se no que o professor dizia. Achou que ele
falava apenas de coisas sem importância. Porque é que ele não falava antes
acerca do que é um ser humano — ou do que é o mundo, e qual fora a sua origem?
Experimentava uma
sensação que nunca experimentara antes: na escola e por toda a parte as pessoas
ocupavam-se apenas com coisas fúteis. Mas havia questões importantes e
difíceis, cuja resposta era mais importante do que as disciplinas normais da
escola.
Teria alguém respostas
para estes problemas? De qualquer modo, Sofia achava mais importante reflectir
sobre eles do que aprender de cor os verbos irregulares.
Quando, após a
última aula, a campainha tocou, ela saiu tão depressa do pátio da escola que Jorunn
teve de correr para a alcançar.
Passado um pouco,
Jorunn perguntou:
— Que tal se
jogássemos às cartas hoje tarde? Sofia encolheu os ombros.
Acho que já não estou
muito interessada em jogos de cartas. Jorunn pareceu cair das nuvens.
Não? Jogamos
então badmington?
Sofia olhou
fixamente para o asfalto e depois para a amiga.
— Acho que já nem
o badmington me interessa. Está bem!
Sofia sentiu na
voz de Jorunn em tom de azedume. Podes então dizer-me o que é que passou a ser
mais importante?
Sofia abanou a
cabeça.
— Isso... é um
segredo.
— Já percebi.
Estás apaixonada.
Caminharam juntas
algum tempo em silêncio. Quando chegaram ao campo desportivo, Jorunn disse:
— Eu vou pelo
campo.
«Pelo campo».
Esse era o caminho mais curto para Jorunn, mas ela só o fazia quando tinha que
chegar cedo a casa, porque esperava visitas, ou porque tinha consulta no
dentista.
Sofia teve pena de ter magoado Jorunn. Mas o que deveria ter respondido?
Que estava subitamente muito ocupada em saber quem era e de onde vinha o mundo
e que já não tinha tempo para jogar badmington? Será que a sua amiga teria
entendido?
Por que motivo
era tão difícil tratar das questões mais importantes e simultaneamente mais naturais?
Sentiu o coração
bater mais depressa à medida que abria a caixa do correio. Primeiro viu apenas
uma carta do banco e alguns envelopes amarelos e grandes, para a sua mãe. Que
aborrecimento. Sofia tinha esperado tanto receber Uma nova carta do remetente
desconhecido!
Quando estava a
fechar o portão, encontrou escrito num dos envelopes grandes o seu nome. No
verso, lia-se: Curso de Filosofia. Não dobrar.
Sofia percorreu o
caminho de saibro e deixou a mala da escola na escada. Empurrou as restantes
cartas para debaixo do capacho, correu para o jardim atrás da casa e
refugiou-se na toca. A carta grande tinha de ser aberta ali.
Sherekan correra
atrás dela, mas contra isso nada podia fazer. Sofia tinha a certeza de que o
gato não daria à língua.
O envelope continha
três grandes folhas escritas à máquina, unidas com um clipe. Sofia começou a
ler.
O que é a
filosofia?
Cara Sofia! Há
muitas pessoas que têm diversos hobbys. Algumas coleccionam moedas antigas ou
selos, outras fazem trabalhos manuais, outras ainda dedicam quase todo o tempo
livre a uma modalidade desportiva.
Muitos gostam de
ler. Mas aquilo que lemos pode variar muito. Há quem leia apenas jornais ou
banda desenhada, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre
os mais variados temas como a astronomia, a vida selvagem ou as descobertas
técnicas.
Se estou
interessado em cavalos ou pedras preciosas, não posso exigir que todos os
outros partilhem deste interesse. Se me sento em frente à televisão encantado
com todos os programas desportivos, tenho de aceitar que outros possam achar o
desporto aborrecido.
Haverá alguma
coisa que interesse a toda a gente? Haverá alguma coisa que diga respeito a
todas as pessoas, independentemente do que são e do sítio do mundo onde vivem?
Sim, cara Sofia, há questões que dizem respeito a todos os homens. E neste
curso trata-se precisamente dessas questões.
Qual a coisa mais
importante na vida? Se o perguntarmos a alguém num país com o problema da fome,
a resposta é: a comida. Se pusermos esta questão a alguém que esteja com frio,
nesse caso a resposta é: o calor. E se perguntarmos a uma pessoa que se sinta
muito sozinha a resposta será certamente: a companhia de outras pessoas.
Mas admitindo que
todas estas necessidades estão satisfeitas será que resta alguma coisa de que
todos os homens precisam? Os filósofos acham que sim. Segundo eles, o homem não
vive apenas do pão. E evidente que todos os homens precisam de comer. Todos
precisam de amor e de atenção, mas há algo mais de que todos os homens
precisam. Precisamos de descobrir quem somos e porque é que vi vemos.
lnteressarmo-nos
pela razão da nossa existência não é um interesse ocasional, como o interesse
em coleccionar selos. Quem se interessa por tais problemas, preocupa-se com
tudo aquilo que os homens discutem desde que apareceram neste planeta. A questão
acerca da origem do universo, do globo terrestre e da vida é mais vasta e mais
importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos
Olímpicos.
A melhor maneira
de nos iniciarmos na filosofia é colocar perguntas filosóficas:
Como se formou o
mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá
vida depois da morte? Como podemos encontrar resposta para estas perguntas? E,
acima de tudo, como deveríamos viver?
Estas perguntas
foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que
não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo.
As perguntas
filosóficas que podemos colocar não são muitas mais. Já colocámos algumas das
mais importantes. A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada
uma destas perguntas.
Por isso, é mais
fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar a sua resposta.
Mesmo hoje, cada
um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não podemos saber se
Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a enciclopédia. A
enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que outros homens
pensaram pode no entanto ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria
concepção da vida e do mundo.
A busca da
verdade pelos filósofos pode ser talvez comparada a um romance policial. Alguns
pensam que Andersen é o assassino, outros pensam que é Nielsen ou Jepsen.
Talvez o verdadeiro mistério deste crime possa ser um dia esclarecido
subitamente pela polícia. Podemos também pensar que a polícia nunca conseguirá
resolver o enigma. Mas este tem, no entanto, uma solução.
Mesmo quando é
difícil responder a uma pergunta, é possível imaginar que a pergunta possa ter
uma — e apenas uma — resposta correcta. Ou há uma forma de vida após a morte ou
não.
Muitos enigmas
antigos foram entretanto resolvidos pela ciência. Outrora, o aspecto da face
oculta da Lua era um grande mistério. Não se podia descobrir a resposta através
da discussão, e assim era deixada à imaginação de cada um. Mas hoje em dia
sabemos exactamente qual é o aspecto da face oculta da Lua. Já não podemos
acreditar que haja um homem a viver na lua, ou que ela seja um queijo.
Segundo um
filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a filosofia surgiu da
capacidade que os homens têm de se surpreender. O homem acha tão estranho
viver, que as perguntas filosóficas surgem por si mesmas.
Pensa no que
sucede quando observamos um truque de magia: não conseguimos perceber como é
possível aquilo que estamos a ver. E perguntamo-nos: como é que o ilusionista
conseguiu transformar dois lenços brancos de seda num coelho vivo?
Para muitos
homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira
subitamente de uma cartola até então vazia.
No que diz
respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que
pretendemos descobrir é como nos enganou. Quando falamos sobre o mundo, a
situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós
estamos na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho
branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho branco é
apenas o facto de o coelho não saber que participa num truque de magia.
Connosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo
misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado.
P.S. No que diz
respeito ao coelho branco, o melhor é talvez compará-lo com o conjunto do
universo. Nós, que vivemos aqui, somos parasitas minúsculos que vivem na pele
do coelho. Mas os filósofos procuram trepar pelos pêlos finos, de modo a
poderem fixar nos olhos o grande ilusionista.
Estás a
seguir-me, Sofia? Receberás a continuação.
Sofia estava exausta.
Se estava a seguir? Já nem sabia se tinha respirado durante a leitura.
Quem tinha
trazido a carta? Quem? Quem?
Era impossível
que fosse a mesma pessoa que enviara o postal de aniversário a Hilde Møller
Knag, visto que o postal tinha selo e carimbo, e o envelope amarelo fora
colocado directamente na caixa do correio exactamente como os envelopes
brancos.
Sofia olhou para o relógio. Eram apenas três menos um quarto. Só daí a
duas horas é que a sua mãe chegaria do trabalho.
Sofia foi de novo
para o jardim, e correu para a caixa do correio. Haveria mais alguma coisa?
Encontrou um
outro envelope amarelo, no qual estava escrito o seu nome. Olhou à sua volta,
mas não conseguiu descobrir ninguém. C2orreU para a orla do bosque e olhou em
redor, mas não encontrou ali vivalma. De repente, pareceu-lhe ouvir ramos a
estalar mais à frente no bosque. Mas não tinha a certeza absoluta, e não faria
sentido ir no encalço de alguém que tentava fugir-lhe.
Sofia abriu a
porta de casa com a chave e co1ocou a mala da escola e correspondência para a
mãe no chão. Foi para o quarto, pegou na grande caixa de biscoitos onde guardava
a sua colecção de pedras, pôs as pedras no chão e colocou os dois envelopes
grandes na caixa. Foi de novo para o jardim com a caixa nas mãos, depois de ter
dado de comer a Sherekan.
— Bichano,
bichano, bichano!
Sentada de novo
dentro da toca, abriu o envelope e retirou várias folhas escritas à máquina. Começou
a ler.
Um ser
estranho
Cá estamos de
novo. Com certeza já percebeste que este pequeno curso de filosofia vem em
doses pequenas. Eis mais algumas observações introdutórias.
Eu já disse que a
capacidade de nos surpreendermos é a única coisa de que precisamos para nos
tornarmos bons filósofos? Se não o disse, digo-o agora: A CAPACIDADE DE NOS
SURPREENDERMOS E A ÚNICA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS BONS FILÓSOFOS.
Todas as crianças
pequenas possuem essa capacidade, isso é óbvio. Com poucos meses de vida,
começam a aperceber-se de uma realidade completamente nova. Mas quando crescem,
esta capacidade parece diminuir. Qual será o motivo? Poderá Sofia Amundsen
responder a esta pergunta?
Se um
recém-nascido pudesse falar, diria certamente muitas coisas sobre o estranho
mundo a que chegou. Porque ainda que a criança não possa falar, vemos como
aponta à sua volta e agarra com curiosidade os objectos no quarto.
Quando começa a
falar, a criança fica parada cada vez que vê um cão e chama: — Ao, ão! Começa a
agitar-se no carrinho, e move freneticamente os braços: — Ao, ão! Nós, que
temos mais idade, sentimo-nos talvez pouco à vontade com o entusiasmo da criança.
— Sim, sim, isso é um ãoão! — dizemos muito sabedores. — Mas agora senta-te.
Não estamos assim tão entusiasmados. Já tínhamos visto cães antes.
Provavelmente,
esta cena repete-se algumas cem vezes até que a criança possa passar por um cão
sem ficar fora de si. Ou por um elefante, ou por um hipopótamo. Mas muito antes
que a criança aprenda a falar correctamente — ou antes que aprenda a pensar
filosoficamente — o mundo tornou-se para ela algo habitual.
É pena.
Será a minha
tarefa impedir que tu, cara Sofia, te tornes uma daquelas pessoas para quem o
mundo é evidente. Para termos a certeza, vamos fazer duas experiências mentais,
antes de começarmos com o curso de filosofia propriamente dito.
Imagina que dás um passeio pelo bosque. De repente, descobres à tua
frente uma pequena nave espacial. Da nave espacial, um marciano desce e olha
fixamente para ti...
O que pensarias
numa situação dessas? Bom, isso, no fundo, é indiferente. Mas já pensaste que
tu mesma és também um marciano?
Obviamente, não é
particularmente provável que alguma vez dês com uma criatura de outro planeta.
Nem sequer sabemos se h6 vida nos outros planetas. Mas é possível que tu dês
contigo mesma. Pode acontecer que um belo dia fiques surpreendida e te vejas de
um modo completamente diferente. Talvez isso se passe precisamente num passeio
pelo bosque.
Eu sou um ser
estranho, pensas tu. Sou um animal misterioso...
Pareces acordar
de um sono de muitos anos como a Bela Adormecida. Quem sou eu? perguntas. Sabes
que estás num planeta do universo. Mas o que é o universo?
Se te descobrires
desta maneira, descobriste algo tão misterioso como o marciano que mencionámos
anteriormente. Não só descobriste um extraterrestre mas sentes interiormente
que tu próprio és um ser desses.
Ainda me estás a
seguir, Sofia? Vamos fazer mais uma experiência:
Certa manhã, o
pai, a mãe e o pequeno Tomás, que tem dois ou três anos, estão sentados na
cozinha durante o pequeno-almoço. De repente, a mãe levanta-se e vira-se para o Lava-louça: nesse preciso momento, o pai começa a voar em direcção ao tecto,
enquanto Tomás observa.
O que te parece
que Tomás diz? Provavelmente, aponta para o pai e diz: — O pai voa!
Certamente que
Tomás ficaria admirado. Mas o pai faz coisas tão estranhas que um pequeno voo
acima da mesa já não tem importância aos seus olhos. Todos os dias faz a barba
com uma máquina engraçada, por vezes trepa ao telhado para orientar a antena da
televisão — ou enfia a cabeça junto ao motor do carro e aparece depois todo
negro.
Depois, é a vez
da mãe. Ela ouviu o que Tomás disse e volta-se rapidamente. Como achas que
reagirá vendo o marido a esvoaçar sobre a mesa da cozinha?
O frasco da
marmelada cai-lhe imediatamente da mão, começará a gritar de medo. Talvez tenha
de ir ao médico, mesmo depois de o pai se ter sentado de novo na cadeira. (Ele
já devia ter aprendido há muito tempo como se comportar à mesa!).
Porque é que
Tomás e a mãe reagem de forma tão diferente?
E uma questão de
hábito. (Toma nota disto!). A mãe aprendeu que os homens não podem voar. Tomás
não. Ainda não distingue o que é possível do que não é.
Mas o que dizer
do mundo, Sofia? Achas que o mundo é possível? Também está suspenso no espaço.
O mais triste é
que ao crescermos não nos habituamos apenas à lei da gravidade, habituamo-nos,
simultaneamente, ao mundo.
Aparentemente,
perdemos durante a nossa infância a capacidade de nos surpreendermos com o
mundo. Mas com isso, perdemos algo essencial — algo que os filósofos querem
reavivar. Porque em nós algo nos diz que a vida é um grande mistério. Já
tivemos essa sensação muito antes de termos aprendido a pensar nisso.
Vou ser mais
preciso: apesar de todas as questões filosóficas dizerem respeito a todos os
homens, nem todos os homens se tornam filósofos. Por diversos motivos, a maior
parte está presa de tal forma ao quotidiano que o espanto perante a vida é
muito escasso. (Descem para a pele do coelho, acomodam-se e permanecem lá em
baixo para o resto da vida).
Para as crianças, o mundo — e tudo o que existe nele — é uma coisa
nova, uma coisa que provoca estupefacção. Os adultos não o vêem assim. A maior
parte dos adultos vê o mundo como qualquer coisa completamente normal.
Os filósofos
constituem uma excepção notável. Um filósofo nunca se conseguiu habituar
completamente ao mundo. Para um filósofo ou para uma filósofa o mundo é ainda
incompreensível, inclusivamente enigmático e misterioso. Os filósofos e as
crianças pequenas possuem uma importante qualidade em comum. Podes dizer que um
filósofo permanece durante toda a sua vida tão capaz de se surpreender como uma
criança pequena.
E agora tens que
te decidir, cara Sofia: és uma criança que ainda não se habituou ao mundo? Ou
és uma filósofa que pode jurar que isso nunca lhe acontecerá?
Se simplesmente
abanas a cabeça e não te sentes nem como criança nem como filósofa, é porque te
acostumaste tão bem ao mundo que este já não te surpreende. Nesse caso, o
perigo está eminente. E por isso te ofereço este curso de filosofia, para
prevenir. Não quero que tu pertenças à categoria dos apáticos e dos indiferentes.
Quero que vivas a tua vida de modo consciente.
Este curso é
completamente grátis. Por isso, também não te será restituído dinheiro se não o
fizeres. Se a determinada altura quiseres interromper o curso, não há problema.
Basta deixares-me uma mensagem na caixa do correio, por exemplo, uma rã viva. De
qualquer modo, tem de ser algo verde, pois não queremos assustar o carteiro.
Breve sumário: um
coelho branco é retirado de uma cartola vazia. Dado que é um coelho muito
grande, este truque leva muitos biliões de anos. Na extremidade dos pêlos finos
nascem todas as crianças humanas. Por isso, podem surpreender-se com a
inacreditável arte da magia. Mas à medida que envelhecem, desusam cada vez mais
para o fundo da pelagem do coelho. E permanecem aí. Lá em baixo estão tão
confortáveis que nunca mais ousam trepar novamente pelos pêlos finos. Só os filósofos
se atrevem a fazer a perigosa viagem à procura das fronteiras extremas da linguagem
e da existência. Alguns deles perdem-se pelo caminho, mas outros agarram-se bem
ao pêlo do coelho chamam os homens que, bem acomodados em baixo, na pele do
coelho, comem e bebem tranquilamente.
— Senhoras e
senhores — gritam — estamos suspensos no espaço.
Mas nenhum dos
homens em baixo, na pele, se interessa pelo ruído que os filósofos fazem.
— Meu Deus, que barulhentos
— dizem.
E continuam a
falar como até então: — Podes passar-me a manteiga? Como estão as acções hoje?
Qual é o preço do tomate? Já sabes que Lady Di deve estar de novo grávida?
Quando, nessa
tarde, a mãe chegou a casa, Sofia estava quase em estado de choque. A caixa com
as cartas do filósofo misterioso estava bem escondida na toca. Depois de ter
tentado estudar um pouco, Sofia ficara a pensar no que tinha lido.
Tantas coisas
sobre as quais nunca tinha reflectido antes! Já não era nenhuma criança mas
também não era ainda verdadeiramente adulta. Sofia reconheceu que já tinha
começado a penetrar profundamente na pelagem do coelho retirado da cartola
negra do universo. Mas o filósofo impedira-a. Ele — ou ela? agarrara-a firmemente
pela nuca e trouxera-a de novo para o pêlo, no qual brincara quando era criança.
Ali fora, na extremidade do pêlo fino, tinha visto de novo o mundo corno se fosse pela primeira vez. O filósofo salvara-a da indiferença quotidiana.
Ouvindo a mãe
entrar, Sofia puxou-a para o quarto, e fê-la sentar numa cadeira.
Mãe, não achas que é estranho viver? — começou.
A mãe ficou de
tal modo perplexa que não lhe ocorreu nenhuma resposta. Normalmente, Sofia
estava sempre sentada a fazer os trabalhos da escola quando ela chegava a casa.
— Bom, por vezes
é - disse.
Por vezes? Quero
dizer não achas estranho que haja um mundo?
Mas Sofia, de que
é que estás a falar?
— Estou a
fazer-te uma pergunta. Mas provavelmente achas o mundo completamente normal?
— Sim. Mas o
mundo é normal. A maior parte das vezes.
Sofia compreendeu
que o filósofo tinha razão. Para os adultos, o mundo era evidente. Tinham
adormecido no sono eterno da vida quotidiana.
— Tu apenas te
habituaste tanto ao mundo, que já não te surpreendes — disse ela.
— Desculpa, mas
eu não estou a perceber nada.
— Estou a dizer
que te habituaste demasiado ao mundo. Por outras palavras: estás completamente
embrutecida.
— Não podes falar
comigo desse modo, Sofia.
— Então, vou
dizê-lo doutra maneira. Já te acomodaste na pele do coelho que neste momento é
tirado da cartola negra do universo. E agora, vais pôr as batatas a cozer.
Depois, lês o jornal, e depois de uma soneca de meia hora vais ver o noticiário
na televisão.
No rosto da mãe,
esboçou-se uma expressão preocupada. De facto, foi à cozinha e pôs as batatas a
cozer. Em seguida, voltou à sala de estar, e aí fez Sofia sentar-se.
— Tenho que falar
contigo começou. Sofia apercebeu-se pelo tom de que se tratava de algo sério.
Não tomaste nenhuma
droga, pois não, miúda?
Sofia não pôde
deixar de se rir, mas compreendeu o motivo dessa pergunta.
— Estás a
brincar? perguntou. Com isso ainda se fica mais apático.
Nessa tarde não
se falou mais em droga nem em coelhos brancos.
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